terça-feira, 28 de junho de 2011

Parte 3 :: texto 1 :: A aristocracia espiritual gnóstica na perspectiva da Nova História - por Jefferson Ramalho

PARTE III - O gnosticismo de Marcião

Conquanto seja um movimento subdividido em diversas correntes, o gnosticismo de maneira geral se caracteriza pelo dualismo entre e o espírito e a matéria, o bem e o mal. “Os gnósticos distinguem, portanto, nitidamente, dois mundos: o mundo material, mau, e o mundo espiritual, o bom. Os homens possuem um elemento material, o corpo, a carne, e um elemento espiritual, a alma, que constitui o homem verdadeiro.”[1]

Portanto, do ponto de vista filosófico, o gnosticismo é marcado por um forte dualismo de matriz platônica. E a gnôsis, enquanto doutrina e revelação religiosa, se apresenta com uma preocupação prioritariamente soteriológica, conclamando a libertação da alma deste mundo material no qual ela se encontra aprisionada, para retornar ao mundo espiritual do qual ela saiu. Tal libertação só é possível, então, através de uma espécie de iluminação, “uma revelação (conhecimento) celeste acompanhada, frequentemente, por fórmulas e ritos mágicos. Nem todos podem participar da gnose. Ela é reservada só aos iniciados, e aí parecia residir sua fortíssima atração.”[2]

Existiram gnosticismos no período chamado apostólico da tradição cristã, alguns até mencionados no Novo Testamento. É o caso, por exemplo, da corrente simoniana, que via em Simão, aquele citado no livro canônico de Atos dos Apóstolos (At 8.9-11, 18), seu grande fundador, considerado por alguns o próprio poder da divindade, por outros, mais à frente, o grande deus supremo. Ao seu lado, os adeptos honravam outra divindade chamada Helena, que “seria a primeira emanação da mente de Simão, da qual foram gerados anjos e poderes.”[3]

Como se não bastasse essa tendência gnóstica no período apostólico, outra que fazia uma interpretação cristológica que entendia Cristo como um Homem Celeste e uma leitura dos textos do apóstolo Paulo que o relacionava às convicções dualistas, o tornava o apóstolo preferido de alguns gnósticos. Marcião teria sido um destes. Para Marcião, um filho de bispo nascido no início do século II nas regiões da atual Turquia, tudo o que simplesmente parecesse judaico deveria ser eliminado do cristianismo de seu tempo. Foi ele, por exemplo, quem teve a ideia de se elaborar um cânon cristão, ou seja, uma lista de livros sagrados que demonstrassem definitivamente que o cristianismo não era e não tinha nenhuma relação com o judaísmo. “Reduz ele o cânon ao Evangelho de Lucas e às Epístolas de Paulo.”[4]

Foi Paulo o apóstolo por excelência pelo simples fato de ter sido o único que realmente rompera com os judeus e fora pregar aos pagãos, segundo a interpretação feita por Marcião. Contra este, Eusébio faz algumas referências em passagens breves como nas seguintes: H.E. IV, 23.4 e em H.E. V, 13.1.

Uma vez que não temos os textos de Marcião, parte do essencial de seu pensamento religioso se resume como na seguinte exposição feita por Frangiotti:

O Demiurgo criou o mundo e o homem, sua própria imagem, de modo que imprimiu necessariamente, nesta obra da criação, o selo de seu poder restrito. Muito fraco para resistir ao elemento material de que seu corpo é formado, o homem cedeu às sugestões do maligno e se expôs à rigorosa justiça do Criador. Exceto um pequeno número de homens, todos os descendentes do primeiro homem se corromperam cada vez mais. O Demiurgo, irritado, os abandonou, pois, ao poder dos demônios, reservando para si os justos, para com eles formar um povo querido, o povo judeu, ao qual deu sua Lei, e ao qual socorria com todo o seu poder, mas sem sucesso, na luta contra o maligno. Contrariamente, pleno de amor para com a humanidade, o Deus bom quis pôr fim a esta luta trazendo a si os homens unicamente por amor. Enviou, então, sobre a terra, seu Cristo, com ordem de revelar a todos os homens, pagãos e judeus, sua essência até então oculta. [...] Revestido de uma aparência de corpo, lançou, a partir desse momento, o fundamento de um novo reino espiritual. Mas, por instigação dos judeus, foi condenado à morte. Sua paixão e sua morte, contudo, foram só aparentes, porque, para sofrer e morrer, era-lhe necessário um corpo real. Ora, ele não podia assumir um corpo material para não cair sob o poder do maligno, sem se submeter ao poder do Demiurgo. Vencido e cheio de cólera, o Deus do AT rasgou o véu do Templo e se submeteu ao Deus de Jesus.[5]

Para os seguidores de Marcião, os chamados marcionitas, Jesus Cristo personificava a revelação divina na qual eles acreditavam. A diferença entre os destinos daqueles que acreditaram no Demiurgo e aqueles que acreditaram na divindade de Jesus Cristo conforme criam os marcionitas, resumia-se na ideia de que estes viverão eterna e perfeitamente felizes em seu reino, enquanto aqueles, como os judeus, passando por um justo juízo, serão condenados ou, na melhor das hipóteses, poderão receber uma felicidade limitada conforme as suas boas obras[6].

Marcião não era um grande teólogo, mas um grande fundador e organizador de igreja. Seus seguidores eram impelidos a uma prática moral muito rigorosa, tendo, inclusive, de interditarem seus matrimônios e o consumo de vinho e de carnes. As igrejas marcionitas, que subsistiram por algum tempo, sobretudo, na Mesopotâmia, precederam outra tendência que surgiria na antiguidade chamada de Maniqueísmo[7].

Até a próxima parte!

Abraços,
Jefferson

NOTAS:

[1] FRANGIOTTI, Roque. História das Heresias... p. 34 e 35. Para o gnosticismo, somente o elemento espiritual do ser humano é capaz de receber e atender o apelo à salvação. Segundo Frangiotti “a redenção consiste em sair deste mundo material, mau, voltado à destruição, e voltar ao mundo espiritual do Pai. Portanto, a salvação está assegurada somente aos ‘espirituais’ gnósticos, àqueles que têm, em si mesmos, a centelha divina originária. Esta centelha é despertada por um processo de conhecimento através da revelação feita ao espírito, através do qual a alma do gnóstico toma consciência da sua verdadeira natureza: sufocada pela matéria, aspira libertar-se dos liames do corpo e do mundo material.”
[2] FRANGIOTTI, Roque. História das Heresias... p. 36.
[3] FRANGIOTTI, Roque. História das Heresias... p. 36.
[4] DANIÉLOU, Jean; Marrou, Henri-Irenée. Nova história da Igreja... p. 115. Marcião, em sua empreitada de elaborar um cânon cristão, além de rejeitar toda a Bíblia Hebraica, entendeu que os evangelhos de Mateus, Marcos e João não eram dignos de credibilidade no que se referia ao real significado da fé cristã, estando ainda muito presos às tradições judaicas. Fez uma seleção cuidadosa tanto dos textos atribuídos a Lucas, excluindo tudo o que pudesse aparentar uma tendência judaica, como dos textos atribuídos a Paulo, o qual, segundo Marcião, teria sido o único que realmente compreendeu Jesus.   
[5] FRANGIOTTI, Roque. História das Heresias... p. 42 e 43. Na mentalidade dos que eram contrários a união entre o gnosticismo e a religião dos cristãos, a figura de Marcião representava uma grande ameaça. Contudo, embora ele tenha sido muito influenciado pelas convicções gnósticas, também discordava de muitos pontos, acabando por organizar um movimento distinto, separado, que em alguns aspectos chegava a ser radicalmente contrário à cosmovisão gnóstica.
[6] “Quanto aos mortos antes da aparição de Cristo, criam que, tocado de compaixão para com eles, Cristo descera aos infernos para lhes oferecer sua salvação a todos, judeus e pagãos.” FRANGIOTTI, Roque. História das Heresias... p. 43.
[7] O Maniqueísmo foi uma corrente de pensamento religioso que seguia as mesmas perspectivas dualistas presentes no gnosticismo, especialmente, no marcionismo. Fundado por Mani, um profeta persa, o maniqueísmo data do século III, reunindo de modo sincrético elementos de diferentes tradições religiosas. É provável que por volta de 302, o imperador Diocleciano tenha promulgado um documento oficial através do qual procurava frear o avanço do maniqueísmo no Império Romano. Segundo Eusébio, em sua H.E. VII, 31.1: “Neste tempo, também aquele louco, epônimo da endemoninhada heresia, armava-se do extravio da razão; o demônio, sim, o próprio Satanás, adversário de Deus, empurrava aquele homem para ruína de muitos. Sendo como era bárbaro em sua vida, por sua própria fala e seus costumes, e demoníaco e demente por natureza, empreendia façanhas em consonância com isto e tentava fazer o papel de Cristo, ora proclamando-se a si mesmo Paráclito e Espírito Santo em pessoa , inflado por sua loucura, ora elegendo, como Cristo, doze discípulos co-partícipes de seu novo sistema. Em realidade, impingiu umas falsas e ímpias doutrinas a base de remendos recolhidos das inúmeras e ímpias heresias, já há muito extintas, e desde a Pérsia as foi transmitindo como veneno mortífero até nossa própria terra habitada, e desde então o ímpio nome dos maniqueus pulula até hoje entre muitos. Este foi, pois, o fundamento desta gnose de falso nome, que brotou nos tempos mencionados.”

Um comentário:

  1. ainda nao consegui ler os textos mas ja salvei tds em um word pra ler no fds!! heeh grande abraço professor!

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