sexta-feira, 1 de julho de 2011

Parte 4 :: texto 1 :: A aristocracia espiritual gnóstica na perspectiva da Nova História - por Jefferson Ramalho

PARTE IV - A aristocracia espiritual gnóstica

É possível encontrar nos escritos gnósticos muito do seu conteúdo de convicções, suas características, seus mistérios. O que os escritos gnósticos “têm a oferecer é sempre um ensino secreto, revelado a poucos e misterioso em sua própria substância.”[1] Muito do que consta nesses textos está carregado de teor mítico. Todo o conhecimento revelado ao gnóstico ganha aquela forma tipicamente mitológica sobre condições supostamente transcendentais, tendo, contudo, características próprias. Nos mitos gnósticos, os atores não são aquelas divindades como as que encontramos nas tradições primitivas. Antes, elas “são noções filosóficas ou teológicas abstratas, ou símbolos religiosos genéricos, que são utilizados não como símbolos, mas como nomes – ‘remitologizados’, como eram, e feitos sujeitos de uma narrativa.”[2]

Não se passa pelos escritos gnósticos sem identificar os seus elementos sincréticos e fantasmagóricos, pois neles são encontrados aspectos da cosmogonia judaica, da mitologia antiga politeísta, da magia, da astrologia popular, das filosofias médio-platônica, judaico-helenística e, até mesmo, da neo-pitagórica.

O gnóstico acreditava ser um eleito deslocado, ou seja, alguém inserido em uma realidade que não era a dele. Embora o termo gnosticismo tenha surgido somente na Modernidade, o termo gnóstico era comum na época, sendo usado, inclusive, pelos Padres da Igreja que os combatiam. Alguns heresiólogos costumavam chamar os gnósticos de membros da seita do demiurgo, embora eles não fossem um grupo religioso organizado. Contudo, suas convicções são religiosas. Eles acreditavam manter uma relação mútua com a divindade a quem chamavam de Pai Silencioso. Este, por sua vez, de forma processual se dava a conhecer ao gnóstico.

“Se tivéssemos que resumir o máximo possível o conteúdo da gnôsis que é revelada aos eleitos, diríamos que é a certeza de que eles são ‘pessoas deslocadas’ na presente realidade.”[3] E como complementa Walker, os gnósticos se consideravam “seres-espíritos oriundos do mundo secreto de Luz e Conhecimento, perdidos e cruelmente aprisionados no cosmo visível, material, das trevas e da ignorância, contudo destinados a retornar inevitavelmente ao seu verdadeiro lar.”[4]

Para um cristão gnóstico chamado Teódoto, na ocasião do batismo, o que de fato liberta o humano não é o rito de lavagem em si, mas o conhecimento, a gnôsis, que o capacita para saber quem ele era e quem ele se tornou, do que foi redimido, para qual condição foi inexplicavelmente atirado e para qual será conduzido a viver eternamente. Os mitos gnósticos, em certo sentido, pretendem oferecer respostas a essas perguntas: O que sou? Por que estou aqui? Uma vez redimido, voltarei ao Pai Silencioso? Tendo tal conhecimento, o gnóstico começa a se conhecer. É essa espiritualidade que permeia os textos gnósticos, demonstrando qual a mentalidade que fundamenta todo esse comportamento que aqui temos chamado de aristocracia espiritual.

Não seria, contudo, um exagero propor que o gnóstico, devido à sua postura, sofrera repressões ao afirmar suas experiências. Sua mente, segundo ele, foi tomada por uma certeza a partir daquilo que ele próprio teria ouvido, visto e sentido. Como dissera o já jansenista Blaise Pascal, essa certeza não parece muito distante do dilaceramento que ocorre entre a pessoa e o mundo, quando se consolida o encontro com o que a tradição cristã chama de Graça. Daí, estabelecer uma aproximação da mentalidade gnóstica com as concepções agostinianas ou mesmo com as ênfases calvinistas, não desconsiderando as devidas diferenças e proporções, não nos parece um equívoco[5].

Existe uma dualidade explícita nos registros escritos do gnosticismo, nos quais a divisão em um domínio de trevas e outro de luz fora concebida desde os primórdios. Nesses mitos, explica-se o deslocamento dos gnósticos como ato conseqüente de um choque entre os dois domínios. Segundo Walker, há outro tipo de mito que teria preponderado entre os cristãos gnósticos que viveram no século II, no qual se afirma que o chamado domínio de trevas, ou seja, o cosmo, não seria primordial, não havia no princípio, mas era secundário e conseqüente de uma queda resultante de um grande equívoco cometido no mundo superior. Conforme este mito, um membro tido como o mais inferior de todos, chamado Sabedoria, errou ao pretender conhecer o Pai Silencioso. Para redimir a Sabedoria de seu erro, uma nova realidade se estabeleceu. “Sua redenção e restauração à ordem, entretanto, impôs o exílio desse erro e paixão do mundo superior; e como resultado dessa expulsão do mal, iniciou-se um processo pelo qual um cosmo inferior veio a existir.”[6] Para os cristãos, a redenção não passa de uma representação ou imagem da dramática redenção que, antes, se dá no mundo-espírito.

A analogia entre a representação imagética da redenção e a que ocorre acontece no mundo-espírito se desenvolve de forma calculada, enfatizando a separação entre as duas ordens que o dualismo gnóstico tanto defende. Não há, portanto, uma união das ordens. Como afirma Walker, “o mundo-luz é feito de espírito (pneuma), ao passo que o mundo inferior é feito de alma (psuchê) e matéria (hulê). Da mesma forma, os dois mundos são comandados por duas deidades diferentes.”[7] Uma é a imagem do Demiurgo, o Modelador, o mesmo Deus Criador da Bíblia Hebraica. Para os gnósticos, ele não é membro do mundo-espírito, embora os autores hebreus o afirmem ser o único Deus, mas é ignorante quanto à origem verdadeira das coisas, não passando de uma imitação, como explica Walker, “da Mente da qual o mundo-espírito e seus habitantes emanam”[8]. Daí, possivelmente, tenha surgido toda a rejeição de Marcião para com a tradição judaica. Se muito, o Deus da Bíblia Hebraica é composto de uma simples coisa-alma, como os próprios gnósticos chamavam.

Assim, os gnósticos por eles próprios eram constituídos de um espírito verdadeiro e sua autêntica habitação é a Plenitude, junto ao Pai Silencioso. Mais do que isso, o gnóstico considerava-se um com o Pai Silencioso, devido à intimidade e superioridade que julgava possuir em contraste da condição inferior, de queda e ignorância, de qualquer outro ser humano. Aí reside a fidalguia que temos chamado desde o início de aristocracia espiritual.

Essa relação de unidade com o Pai Silencioso afirmada pelos gnósticos, grosso modo, justifica o porquê da identificação que eles tiveram por bastante tempo com o Evangelho de João, cuja personagem protagonista, o Logos, teria sido o gnóstico por excelência[9]. Criam que o Pai Silencioso lhes contava – e somente a eles, os gnósticos – o que precisariam saber enquanto permanecessem nessa habitação cósmica, nessa estadia apenas temporária, pois para o gnóstico, o mundo é ruidoso, barulhento, insuportável[10].

Para os gnósticos cristãos do século II havia três grupos de pessoas: a) aquelas irremediavelmente destinadas à perdição eterna, à destruição, b) aquelas que pertenciam ao Deus da Bíblia Hebraica, os cristãos comuns, que receberiam uma redenção de segunda classe, c) por fim, os gnósticos espirituais, destinados à Plenitude[11].

O Cristo dos cristãos gnósticos, paradoxalmente, não era considerado a encarnação do Pai Silencioso, mas o próprio. Nessa perspectiva gnóstica, existiam dois Cristos: um que era o Messias prometido pelo Deus-Criador da Bíblia Hebraica e o outro que era o verdadeiro Redentor, Salvador, que veio da Plenitude para a qual todo gnóstico acreditava que retornaria. Ao conhecimento proveniente desta concepção cristológica defendida por cristãos gnósticos, obviamente apenas estes tinham acesso.

Há que se tomar um cuidado que cristãos ortodoxos não têm ao refutar os gnósticos, que tem a ver com a capacidade e honestidade hermenêutica destes. Suas interpretações não tinham qualquer interesse em provocar toda aquela tensão entre as posteriormente chamadas ortodoxia e heterodoxia. Como afirma Walker, “o que sabemos dos grandes mestres gnósticos cristãos do início do segundo século indica que eles eram intérpretes sinceros e significativos da tradição e literatura cristã primitiva.”[12] Concomitantemente, não é exagero concluir que os mesmos mestres do gnosticismo cristão, seguidores de Valentino, como Teódoto, se inspiraram na linguagem de Epístolas atribuídas a Paulo, especialmente em suas concepções de “carnal”, “psíquico” e “espiritual”. Outro seguidor de Valentino, chamado Ptolomeu, em boa parte de sua Carta a Flora analisa as “fontes” da Lei judaica, buscando identificar a presença dos mesmos níveis da existência humana: a matéria, a alma e o espírito.

Na próxima semana, nossas conclusões, para posteriormente conversarmos sobre outro assunto.

Abraços e até lá,
Jefferson


NOTAS:

[1] WALKER, Wiliston. História da Igreja Cristã... p. 77 e 78. “Nem todo mundo é capaz do conhecimento (gnosis) que o gnóstico possui, e uma (embora não a única) razão para isso é que o conhecimento se refere a coisas que não são aparentes – verdades sobre uma realidade primordial que não estão apenas além do pensamento e da experiência ordinários, mas positivamente são estranhas a ele. Há, portanto, uma qualidade deliberadamente semelhante a enigma, acerca de muito do discurso gnóstico, um deleite no obscuro, no complexo e no mistificador.”
[2] WALKER, Wiliston. História da Igreja Cristã... p. 78.
[3] WALKER, Wiliston. História da Igreja Cristã... p. 78.
[4] WALKER, Wiliston. História da Igreja Cristã... p. 78.
[5] cf. PÉTREMENT, Simone. Le dieu separe – les origines du gnosticisme, Paris, Ed. du Cerf, 1984. Ao contrário do que costuma ser defendido por tendências cristãs ortodoxas, o gnosticismo pode ser compreendido a partir das origens cristãs. Mais do que isso, os principais mitos gnósticos possuem relações diretas com o começo da tradição escrita cristã, inclusive aquela que acabou canonizada, ou seja, o Novo Testamento. Se Graça significa liberação e revelação, não é errado concluir que tal conceito tem suas origens no gnosticismo, mais que no cristianismo. Agostinho, ao dialogar com a filosofia platônica para defender suas convicções teológicas, não parece trazer uma reflexão original, pois no gnosticismo já parecia existir uma perspectiva semelhante. Quando nos séculos XVI e XVII, os chamados reformadores e reformados, especialmente os calvinianos e calvinistas, fazem um resgate da soteriologia agostiniana para defender suas ideias contra a valorização que a Igreja Católica atribuía às boas obras, eles acabam se aproximando, sobremaneira, das concepções gnósticas de eleição, de escolha divina. 
[6] WALKER, Wiliston. História da Igreja Cristã... p. 79. Neste cosmo inferior passaram a ficar aprisionados todos os chamados elementos-espíritos exilados, o que não parece muito diferente da narrativa sagrada da cosmogonia judaico-cristã. Segundo Walker, após tal queda, “vieram a existir dois mundos paralelos: o mundo original, mundo divino de coisa-espírito, que é denominado ‘a Plenitude’ (plêrôma), e o mundo inferior, mundo material, que algumas vezes é denominado ‘o Vazio’ (kerôma). É característica do pensamento gnóstico cristão enfatizar o paralelismo entre estas duas ordens. Tudo o que é verdadeiro e importante acontece na Plenitude, mas é imitado de uma maneira transposta no nível inferior do cosmo visível.”
[7] WALKER, Wiliston. História da Igreja Cristã... p. 79.
[8] WALKER, Wiliston. História da Igreja Cristã... p. 80.
[9] O primeiro comentário do Evangelho de João de que se tem notícia foi escrito por um gnóstico chamado Heráclon, discípulo de Valentino.
[10] “É somente através da graça de uma revelação que eles se tornam conscientes de que são ‘formados’ para a restauração a seu estado apropriado. Uma vez que recebem essa ‘formação em conhecimento’, contudo, eles compreendem que são os eleitos – seres de uma ordem superior mesmo ao Deus-Criador das Escrituras judaicas e portanto libertos dos embaraços da ordem-mundo opressiva que ele tenta governar. Inevitavelmente, então, sua situação como recipientes da gnôsis os coloca à parte das outras pessoas.” WALKER, Wiliston. História da Igreja Cristã... p. 80.
[11] “É desnecessário dizer, esse sentimento de constituir uma elite cuja salvação estava assegurada e cujo status os situava além da preocupação com os simples exteriores da vida no cosmo, fazia dos gnósticos próximos perturbadores na vida das igrejas. Eles frequentemente professavam indiferença à vida de ‘fé e obras’ e a necessidade de testemunho pelo martírio. Eles tinham, ou pareciam ter, pouco compromisso com a vida comunitária, institucional da igreja. Eles aparentemente estavam, pelo menos na impressão que passavam para os outros, literalmente bastante acima de tudo isso. [...] Os gnósticos cristãos eram distintos dos outros pelo fato de que eles identificavam o portador da revelação salvífica com o Cristo ou Jesus.” WALKER, Wiliston. História da Igreja Cristã... p. 80.
[12] WALKER, Wiliston. História da Igreja Cristã... p. 81. É possível que esses mestres gnósticos seguissem uma tradição secreta, a qual, segundo eles próprios, teria sido iniciada com as revelações de Cristo aos discípulos após a ressurreição. Boa parte dos escritos gnósticos tem a ver com essas revelações.

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