terça-feira, 21 de junho de 2011

Parte 1 :: texto 1 :: A aristocracia espiritual gnóstica na perspectiva da Nova História - por Jefferson Ramalho

PARTE I - Introdução

Resumo: O objetivo deste artigo é tratar da aristocracia espiritual do gnosticismo existente na época das origens cristãs, tendo como referencial historiográfico a Nova História, contrapondo em alguns momentos o modo apologético com que Eusébio de Cesaréia, historiador do século IV, tratou do mesmo tema. Nova História é como se identifica a Escola dos Annales, sobretudo, sua terceira geração, abordando entre tantas questões da história das ideias e das mentalidades. Observando concentradamente as origens e os desdobramentos do gnosticismo, verificaremos o que mais o caracterizara como movimento portador do que aqui temos chamado de aristocracia espiritual.

Palavras chave: Gnosticismo, aristocracia espiritual, historiografia, Nova História.


Se refletirmos de maneira cuidadosa a respeito da história das experiências religiosas nos mais diversos ramos do cristianismo, iremos perceber que aquilo que chamamos de aristocracia espiritual não diz respeito, apenas, à maneira como os gnósticos se consideravam. Achar-se mais próximo do Sagrado, do Divino, do Transcendente, não parece ser uma condição muito distinta daquela que pode ser identificada nas palavras atribuídas a Jesus de Nazaré, ao apóstolo Paulo, aos Padres do Deserto, a Francisco de Assis e a tantas outras personagens de importância para a história da tradição cristã. Só que para nós, não é só de grandes personagens que vive a História! Ao contrário, a História é construída, também, e quem sabe, sobretudo, pelos que são considerados sem importância. Neste sentido, cabe nossa reflexão a respeito do gnosticismo e seus protagonistas, pois conquanto tenham sido considerados hereges já pelas primeiras concepções ortodoxas da teologia cristã, entendemos que eles tiveram sua importância na história da religião cristã, ainda que tidos como seus adversários.

Não pretendemos fazer uma apologia em sentido contrário. Antes, nosso objetivo consiste em buscar uma compreensão dos processos. Não nos importa se os gnósticos estavam corretos ou equivocados em suas múltiplas e supostamente controvertidas interpretações. O que queremos é identificar suas origens e seus desdobramentos, tomando como referenciais teórico-metodológicos duas escolas específicas, já que tem sido este o nosso objeto de pesquisa: uma escola historiográfica de matriz eusebiana sempre dedicada a triunfalismos e personalismos, típicos do que será conhecido somente no século XIX como historiografia positivista e outra escola historiográfica mais contemporânea que surge e se oficializa no século XX com o intuito de romper com o tradicional estilo de escrever a história valorizando apenas datas e fatos políticos tidos como determinantes e personagens supostamente mais importantes, demonstrando tratar-se de uma forma historiográfica tendenciosa e exclusivista*.

Visto em nota que a história pode ser considerada uma ciência, há que se levar em conta que é em seu debate com as ciências da religião que uma terceira vertente se encontra transitando. Estamos nos referindo à filosofia da religião. Neste sentido, nossa preocupação historiográfica no presente artigo – e nisso não podemos nos perder – será a de verificar o problema da aristocracia espiritual estabelecendo um diálogo com o olhar da filosofia da religião e não da teologia ou da história meramente narrativa.

Neste artigo não entraremos nas discussões políticas, especificamente sobre processos de institucionalização da religião cristã. Também não nos preocuparemos com os desdobramentos da aristocracia espiritual cristã entre místicos e místicas medievais como Mechtild von Magdeburg e Marguerite Porete. Nossas intenções se concentram no estudo do gnosticismo, suas origens e seus primeiros desdobramentos.

Contudo, não nos privaremos de algumas inquietações: até que ponto essa aristocracia espiritual identificada neste gnosticismo acusado de heresia pela ortodoxia cristã não poderia estar presente, também, nas vertentes chamadas de democracia espiritual, dentro do próprio contexto cristão? Seria exagero concluir por meio de uma releitura que o Jesus de Nazaré dos textos canonizados e não somente aquele Jesus dos textos tidos como apócrifos também seria uma espécie de aristocrata espiritual? Sabendo que Paulo, aquele que é visto como um dos pilares da igreja primitiva ao lado de Pedro, fez certas afirmações acerca de si próprio nas cartas que lhe são atribuídas, seria um equívoco identificá-lo como um aristocrata espiritual? Para encerrarmos, as afirmações acerca de suas próprias condições, suas experiências místicas, seus rompimentos com aquela cristandade corrompida em processo de institucionalização nos tempos de Constantino, seria demais concluir que os Padres do Deserto também eram aristocratas espirituais, já que para eles só seria possível estar em contato direto com a divindade por meio dos exercícios espirituais que eles praticavam como a solicitude, o silêncio, o retiro, o isolamento, a ascese, a contemplação? Assim sendo, qual ser religioso não é um aristocrata espiritual? O fato é que na aristocracia espiritual existe uma noção de liberdade para, entre outras coisas, debater com a divindade devido à suposta intimidade que há entre esta e o ser religioso.

O aristocrata espiritual se acha no direito de discutir com a divindade acerca, por exemplo, da condição em que ele se encontra. O gnóstico era assim. Ele não admitia fazer parte de uma realidade tão decadente, não compatível à sua condição de ser. Para o gnóstico, o seu lugar não era o mundo, ao lado de seres humanos não portadores do conhecimento absoluto que somente ele, o gnóstico, possuía. Tal condição tratava-se de uma espécie de conhecimento em meio ao não conhecimento, estar sem fazer parte e sem porquê de fazer parte. Seguindo Hans Jonas, a chamada alteridade solitária se dá quando o ser humano não se sente participante de qualquer coisa, havendo um pânico e um medo dos quais é necessário se desintoxicar. É neste processo de desintoxicação que ocorre uma espécie de luta interior, uma batalha, uma ascese, uma catarse, uma limpeza. A comparação com a tradição monacal cristã é inevitável, sobretudo, considerando as motivações internas para se distanciar e se separar do mundo, das relações sociais vistas por eles como corrompidas.

Na aristocracia gnóstica, isso tudo tem a ver com a consciência de que o eu do ser humano não lhe pertence, mas o deus demiurgo é que lhe habita. Para o próprio gnóstico, ele é quem escapa da alienação que atingiu quase toda a humanidade, com a qual ele não tem qualquer obrigação. Se o gnóstico é aquele que experimenta a liberdade autêntica do eu, ele se vê no poder de se considerar superior a tudo e a todos.

Há que se tomar cuidado no exercício comparativo, pois existem nítidos desencontros – não apenas encontros – entre as correntes gnósticas e os estóicos ou mesmo os monges cristãos. É bom frisar, por exemplo, que entre os gnósticos não havia proselitismo, pois eles não queriam e não precisavam conquistar nada nem ninguém. Daí a pergunta: por que, então, dos escritos gnósticos? Embora em meio à complexidade e a amplitude do gnosticismo – o que veremos em nosso tópico seguinte – poderia até haver um grupo pequeno de gnósticos que tenha se preocupado com a expansão de suas perspectivas, embora o gnosticismo por natureza não fosse dado a esta prática. Seus escritos não tinham pretensões do tipo evangelizadoras, como parece claro nos evangelhos sinóticos, mas eram produzidos para “consumo” deles próprios.


Vamos, agora, para uma releitura propriamente historiográfica do gnosticismo, suas origens e seus desdobramentos. Historiadores como Jean Daniélou e Wiliston Walker muito nos ajudarão nesta tarefa.

Na próxima a gente continua nossa conversa.

Forte abraço!

NOTAS

* Escola historiográfica eusebiana, assim a chamamos por se tratar daquela iniciada com a obra clássica de história da religião cristã intitulada História eclesiástica, escrita por Eusébio de Cesaréia (c. 260 – c. 339), na primeira metade do século IV de nossa Era. Desde então, a história da religião cristã a tomou como modelo historiográfico. Tanto aqueles historiadores da igreja que são considerados primeiros sucessores de Eusébio, passando pelos que viveram no Medievo e na época das Reformas como Matias Flácio do lado protestante e César Barônio do lado católico, até aqueles mais recentes que procuram escrever a história do cristianismo com o objetivo explícito de tornar evidente um discurso teológico específico, são os que dão forma a tal escola. Dadas as devidas proporções e não desconsiderando as diferenças, entendemos que essa escola eusebiana de história da igreja em muito se aproxima do método proposto pela historiografia positivista do século XIX, a qual teve como teórico de maior destaque o alemão Leopold von Ranke (1795 – 1886). Para ele que é considerado pai da história científica, o historiador deve simplesmente narrar o passado tal como ocorreu, recorrendo, apenas, às fontes consideradas oficiais, pois somente estas são dignas de credibilidade. Neste sentido, Ranke e toda a escola positivista estariam contribuindo para uma história triunfalista, valorizadora de grandes datas e personagens e reduzida a uma história política. O ponto de convergência que temos identificado entre Ranke e Eusébio é a semelhança que há entre as preocupações de ambos quando se propuseram escrever uma história do cristianismo. Eusébio, em sua História eclesiástica, não esconde que sua convicção consiste em relacionar a história da igreja à história da sucessão apostólica, ou seja, falando dos apóstolos e bispos da história – naquele caso, dos primeiros trezentos anos de cristianismo – não havendo qualquer interesse em mencionar a história dos cristãos leigos, ou seja, daqueles que embora fossem cristãos não eram superiores eclesiásticos. Ranke, curiosamente, escreveu uma História dos Papas, se deixando entender como alguém que reduz a história do cristianismo à história de seus líderes. Para nós, indiscutivelmente, este é um ponto de convergência entre Ranke e Eusébio. Já a escola historiográfica contemporânea que faz o contraponto, rompendo definitiva e oficialmente com o positivismo rankeano, é a chamada Escola dos Annales. Esta foi iniciada em 1929, a partir da publicação da revista acadêmica de História intitulada Annales d’Histoire Economique et Sociale. Os dois historiadores que lideraram as primeiras edições dessa revista foram o medievalista Marc Bloch e o modernista Lucien Febvre, então professores da Universidade de Estrasburgo, na França. Uma segunda geração desta escola historiográfica foi liderada por Fernand Braudel, por volta de 1950. A partir da década de 70, intelectuais como Jacques Le Goff e Michel Foucault passavam a liderar a terceira geração. Há quem afirme que desde 1988 uma nova geração desta escola tenha sido iniciada, tendo historiadores como Peter Burke a compondo. Entre as propostas de inovação historiográfica dos Annales estão a problematização da história, o novo conceito de fonte histórica, a longa duração, o conceito de mentalidades e a interdisciplinaridade que propõe o diálogo da história com as ciências sociais, especialmente, a sociologia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário