terça-feira, 28 de junho de 2011

Parte 3 :: texto 1 :: A aristocracia espiritual gnóstica na perspectiva da Nova História - por Jefferson Ramalho

PARTE III - O gnosticismo de Marcião

Conquanto seja um movimento subdividido em diversas correntes, o gnosticismo de maneira geral se caracteriza pelo dualismo entre e o espírito e a matéria, o bem e o mal. “Os gnósticos distinguem, portanto, nitidamente, dois mundos: o mundo material, mau, e o mundo espiritual, o bom. Os homens possuem um elemento material, o corpo, a carne, e um elemento espiritual, a alma, que constitui o homem verdadeiro.”[1]

Portanto, do ponto de vista filosófico, o gnosticismo é marcado por um forte dualismo de matriz platônica. E a gnôsis, enquanto doutrina e revelação religiosa, se apresenta com uma preocupação prioritariamente soteriológica, conclamando a libertação da alma deste mundo material no qual ela se encontra aprisionada, para retornar ao mundo espiritual do qual ela saiu. Tal libertação só é possível, então, através de uma espécie de iluminação, “uma revelação (conhecimento) celeste acompanhada, frequentemente, por fórmulas e ritos mágicos. Nem todos podem participar da gnose. Ela é reservada só aos iniciados, e aí parecia residir sua fortíssima atração.”[2]

Existiram gnosticismos no período chamado apostólico da tradição cristã, alguns até mencionados no Novo Testamento. É o caso, por exemplo, da corrente simoniana, que via em Simão, aquele citado no livro canônico de Atos dos Apóstolos (At 8.9-11, 18), seu grande fundador, considerado por alguns o próprio poder da divindade, por outros, mais à frente, o grande deus supremo. Ao seu lado, os adeptos honravam outra divindade chamada Helena, que “seria a primeira emanação da mente de Simão, da qual foram gerados anjos e poderes.”[3]

Como se não bastasse essa tendência gnóstica no período apostólico, outra que fazia uma interpretação cristológica que entendia Cristo como um Homem Celeste e uma leitura dos textos do apóstolo Paulo que o relacionava às convicções dualistas, o tornava o apóstolo preferido de alguns gnósticos. Marcião teria sido um destes. Para Marcião, um filho de bispo nascido no início do século II nas regiões da atual Turquia, tudo o que simplesmente parecesse judaico deveria ser eliminado do cristianismo de seu tempo. Foi ele, por exemplo, quem teve a ideia de se elaborar um cânon cristão, ou seja, uma lista de livros sagrados que demonstrassem definitivamente que o cristianismo não era e não tinha nenhuma relação com o judaísmo. “Reduz ele o cânon ao Evangelho de Lucas e às Epístolas de Paulo.”[4]

Foi Paulo o apóstolo por excelência pelo simples fato de ter sido o único que realmente rompera com os judeus e fora pregar aos pagãos, segundo a interpretação feita por Marcião. Contra este, Eusébio faz algumas referências em passagens breves como nas seguintes: H.E. IV, 23.4 e em H.E. V, 13.1.

Uma vez que não temos os textos de Marcião, parte do essencial de seu pensamento religioso se resume como na seguinte exposição feita por Frangiotti:

O Demiurgo criou o mundo e o homem, sua própria imagem, de modo que imprimiu necessariamente, nesta obra da criação, o selo de seu poder restrito. Muito fraco para resistir ao elemento material de que seu corpo é formado, o homem cedeu às sugestões do maligno e se expôs à rigorosa justiça do Criador. Exceto um pequeno número de homens, todos os descendentes do primeiro homem se corromperam cada vez mais. O Demiurgo, irritado, os abandonou, pois, ao poder dos demônios, reservando para si os justos, para com eles formar um povo querido, o povo judeu, ao qual deu sua Lei, e ao qual socorria com todo o seu poder, mas sem sucesso, na luta contra o maligno. Contrariamente, pleno de amor para com a humanidade, o Deus bom quis pôr fim a esta luta trazendo a si os homens unicamente por amor. Enviou, então, sobre a terra, seu Cristo, com ordem de revelar a todos os homens, pagãos e judeus, sua essência até então oculta. [...] Revestido de uma aparência de corpo, lançou, a partir desse momento, o fundamento de um novo reino espiritual. Mas, por instigação dos judeus, foi condenado à morte. Sua paixão e sua morte, contudo, foram só aparentes, porque, para sofrer e morrer, era-lhe necessário um corpo real. Ora, ele não podia assumir um corpo material para não cair sob o poder do maligno, sem se submeter ao poder do Demiurgo. Vencido e cheio de cólera, o Deus do AT rasgou o véu do Templo e se submeteu ao Deus de Jesus.[5]

Para os seguidores de Marcião, os chamados marcionitas, Jesus Cristo personificava a revelação divina na qual eles acreditavam. A diferença entre os destinos daqueles que acreditaram no Demiurgo e aqueles que acreditaram na divindade de Jesus Cristo conforme criam os marcionitas, resumia-se na ideia de que estes viverão eterna e perfeitamente felizes em seu reino, enquanto aqueles, como os judeus, passando por um justo juízo, serão condenados ou, na melhor das hipóteses, poderão receber uma felicidade limitada conforme as suas boas obras[6].

Marcião não era um grande teólogo, mas um grande fundador e organizador de igreja. Seus seguidores eram impelidos a uma prática moral muito rigorosa, tendo, inclusive, de interditarem seus matrimônios e o consumo de vinho e de carnes. As igrejas marcionitas, que subsistiram por algum tempo, sobretudo, na Mesopotâmia, precederam outra tendência que surgiria na antiguidade chamada de Maniqueísmo[7].

Até a próxima parte!

Abraços,
Jefferson

NOTAS:

[1] FRANGIOTTI, Roque. História das Heresias... p. 34 e 35. Para o gnosticismo, somente o elemento espiritual do ser humano é capaz de receber e atender o apelo à salvação. Segundo Frangiotti “a redenção consiste em sair deste mundo material, mau, voltado à destruição, e voltar ao mundo espiritual do Pai. Portanto, a salvação está assegurada somente aos ‘espirituais’ gnósticos, àqueles que têm, em si mesmos, a centelha divina originária. Esta centelha é despertada por um processo de conhecimento através da revelação feita ao espírito, através do qual a alma do gnóstico toma consciência da sua verdadeira natureza: sufocada pela matéria, aspira libertar-se dos liames do corpo e do mundo material.”
[2] FRANGIOTTI, Roque. História das Heresias... p. 36.
[3] FRANGIOTTI, Roque. História das Heresias... p. 36.
[4] DANIÉLOU, Jean; Marrou, Henri-Irenée. Nova história da Igreja... p. 115. Marcião, em sua empreitada de elaborar um cânon cristão, além de rejeitar toda a Bíblia Hebraica, entendeu que os evangelhos de Mateus, Marcos e João não eram dignos de credibilidade no que se referia ao real significado da fé cristã, estando ainda muito presos às tradições judaicas. Fez uma seleção cuidadosa tanto dos textos atribuídos a Lucas, excluindo tudo o que pudesse aparentar uma tendência judaica, como dos textos atribuídos a Paulo, o qual, segundo Marcião, teria sido o único que realmente compreendeu Jesus.   
[5] FRANGIOTTI, Roque. História das Heresias... p. 42 e 43. Na mentalidade dos que eram contrários a união entre o gnosticismo e a religião dos cristãos, a figura de Marcião representava uma grande ameaça. Contudo, embora ele tenha sido muito influenciado pelas convicções gnósticas, também discordava de muitos pontos, acabando por organizar um movimento distinto, separado, que em alguns aspectos chegava a ser radicalmente contrário à cosmovisão gnóstica.
[6] “Quanto aos mortos antes da aparição de Cristo, criam que, tocado de compaixão para com eles, Cristo descera aos infernos para lhes oferecer sua salvação a todos, judeus e pagãos.” FRANGIOTTI, Roque. História das Heresias... p. 43.
[7] O Maniqueísmo foi uma corrente de pensamento religioso que seguia as mesmas perspectivas dualistas presentes no gnosticismo, especialmente, no marcionismo. Fundado por Mani, um profeta persa, o maniqueísmo data do século III, reunindo de modo sincrético elementos de diferentes tradições religiosas. É provável que por volta de 302, o imperador Diocleciano tenha promulgado um documento oficial através do qual procurava frear o avanço do maniqueísmo no Império Romano. Segundo Eusébio, em sua H.E. VII, 31.1: “Neste tempo, também aquele louco, epônimo da endemoninhada heresia, armava-se do extravio da razão; o demônio, sim, o próprio Satanás, adversário de Deus, empurrava aquele homem para ruína de muitos. Sendo como era bárbaro em sua vida, por sua própria fala e seus costumes, e demoníaco e demente por natureza, empreendia façanhas em consonância com isto e tentava fazer o papel de Cristo, ora proclamando-se a si mesmo Paráclito e Espírito Santo em pessoa , inflado por sua loucura, ora elegendo, como Cristo, doze discípulos co-partícipes de seu novo sistema. Em realidade, impingiu umas falsas e ímpias doutrinas a base de remendos recolhidos das inúmeras e ímpias heresias, já há muito extintas, e desde a Pérsia as foi transmitindo como veneno mortífero até nossa própria terra habitada, e desde então o ímpio nome dos maniqueus pulula até hoje entre muitos. Este foi, pois, o fundamento desta gnose de falso nome, que brotou nos tempos mencionados.”

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Parte 2 :: texto 1 :: A aristocracia espiritual gnóstica na perspectiva da Nova História - por Jefferson Ramalho

PARTE II - O Gnosticismo e suas origens

O processo de avanço, mas também de crises internas do cristianismo primitivo, mais corretamente chamado de judeu-cristianismo, se deu do ano 70 ao ano 140 de nossa Era. Foi neste contexto que o gnosticismo surgiu, tendo uma identidade já bastante diversificada. É necessário salientar que se trata de um movimento distinto das tendências apocalípticas, tanto as de matriz judeu-cristãs como as que eram puramente judias. O fato é que este gnosticismo do qual estamos falando trata-se daquele movimento que, ao lado de tantas outras correntes que surgiriam, sobretudo, a partir da segunda metade do século II, compuseram aquela gama de tendências cristãs que após pouquíssimo espaço de tempo foram consideradas as primeiras heresias da história da teologia. Vistas como tendências heterodoxas e controvertidas, elas obrigaram os primeiros intelectuais cristãos – os conhecidos Padres da Igreja – especialmente aqueles que abraçaram a causa apologética, a escreverem as primeiras obras e tratados de teologia que respondiam os seus equívocos doutrinários.

O gnosticismo, ao lado de tantas outras tendências tidas como heterodoxas, foi acusado, respondido, censurado e silenciado. Hoje, o que sabemos a seu respeito, graças a Eusébio e aos seus continuadores no trabalho historiográfico-apologético, são apenas aquelas informações que o condenam. A tendência gnóstica foi considerada a primeira e mais perigosa heresia surgida no seio da igreja primitiva. Não fossem os escritos encontrados em Nag Hammad ao final da década de 1940[1], pouco ou mesmo nada se saberia a respeito de suas ideias a não ser aquilo que foi escrito pelos seus adversários. Segundo nos informa Wiliston Walker, “é dessa descoberta que temos obras como O Evangelho da Verdade, O Evangelho de Tomé, o assim chamado Tratado Tripartido e o Tratado Sobre a Ressurreição, frequentemente referido como a Epístola a Regino.”[2] 

O gnosticismo foi muito amplo, diversificado, e teria surgido por volta dos anos 70 do primeiro século, após a queda de Jerusalém. Há quem relacione o Ebionismo[3] como sendo uma primeira face do gnosticismo cristão. Contudo, Daniélou afirma que esta corrente não faz “parte dos gnósticos no sentido próprio do termo.”[4] Em todo o caso, como o próprio Daniélou salienta, a corrente ebionita era composta por “cristãos de língua aramaica, muito afeiçoados às práticas judaicas, mas hostis ao Templo de Jerusalém e agarrados a doutrinas esotéricas, como a transmigração.”[5]

Um segundo grupo localizado frequentemente no contexto de origens do gnosticismo é o dos elquesaítas. O Elquesaísmo tinha esse nome por causa de seu fundador Elxai, o qual teria recebido uma revelação divina enquanto estava no país dos partas no ano 100, o terceiro ano do reinado de Trajano. Tal revelação, transcrita num livro que lhe fora entregue por um anjo, tratava do perdão pelos pecados praticados após o batismo. Depois desta experiência, a orientação de Elxai teria sido no sentido de que os fiéis deveriam orar voltados para Jerusalém, se circuncidar e viver conforme a Lei judaica. Eusébio assim se refere aos elquesaítas em sua História eclesiástica:

Também então deu início a uma nova perversão a heresia chamada dos helquesaítas, que se extinguiu logo depois de nascida. E mencionada por Orígenes em uma homilia sobre o salmo 82, que pronunciou em público, e diz assim: "Veio recentemente um que se gloria de poder ser embaixador de uma doutrina atéia e ímpia por demais, chamada dos helquesaítas, que se levantou recentemente contra as igrejas. Quais são as maldades que profere esta doutrina, vou expô-las, para que não vos capture. Rechaça algumas coisas de toda a Escritura; utiliza, no entanto, passagens tomadas de todo o Antigo Testamento e dos Evangelhos; rechaça por inteiro o Apóstolo. Diz que renegar a fé é coisa indiferente, e que o homem atento, em caso de necessidade, renegará com a boca, ainda que não com o coração. E possuem um livro do qual dizem que caiu do céu e que quem o ouça e tenha fé receberá perdão de seus pecados, um perdão diferente do que Cristo Jesus deu."[6]

Conforme bem observa Roque Frangiotti, o historiador Eusébio se equivocou ao situar o surgimento do Elquesaísmo entre 245 e 250. Antes, a documentação confiável a respeito dessa corrente deve-se a Hipólito, especificamente em sua obra Philosophoumena, a qual, inclusive, teria sido conhecida pelo próprio Orígenes. Diferentemente da exposição até bastante agressiva feita por Eusébio, Daniélou assim expõe as características do pensamento elquesaíta:

[...] seu cristianismo lembra em muitos traços o ebionismo. Cristo é apenas profeta. As Epístolas de São Paulo são rejeitadas. Os elcasaítas não passam, pois de judeu-cristãos heterodoxos.  Mas prendem-se também ao judaísmo heterodoxo. Rejeitam os sacrifícios. Retêm apenas certas partes do Antigo Testamento. Conhecem igualmente práticas batistas. [...] Anotemos afinal a semelhança com Hermas, que também recebe a revelação através de um livro, cujo conteúdo é a pregação de uma última remissão para os pecados cometidos após o batismo. Ora, Hermas é profeta judeu-cristão. Podemos, pois, concluir de tais dados que é o elcasaísmo um movimento judeu-cristão heterodoxo, vizinho do ebionismo, mas vinculado à Síria oriental.[7]

Posteriormente, podemos dar atenção a outro movimento pertencente ao contexto de origens do gnosticismo que é o dos nicolaítas. Há diferentes passagens em algumas das Epístolas canônicas do Novo Testamento como as que foram atribuídas a Judas e a Pedro fazendo referências a certo grupo que, ao que tudo indica, dizem respeito a essa corrente. O Apocalipse de João também parece estar pensando neles ao se referir a um movimento de semelhantes tendências nas regiões da Ásia Menor. Segundo Daniélou, “se reunirmos os traços que aparecem nestes textos, verificaremos em primeiro lugar a rejeição completa das observâncias noáquicas, fato que devia escandalizar os judeu-cristãos.”[8] O mais provável é que o nicolaísmo estivesse ligado à personagem bíblica chamada Balaão, pai do dualismo e ancestral dos magos na perspectiva judaica contemporânea. Aí identificamos elementos da rebelião gnóstica contra a divindade da Bíblia Hebraica, a qual teria sido responsável por iludir as expectativas apocalípticas do povo.

Além dessas referências aos nicolaítas contidas em textos canônicos da tradição judaico-cristã, podemos sugerir a consulta de menções feitas por Padres como Ireneu, além do próprio Eusébio. Este, sobre os nicolaítas, teria fornecido mais detalhes:

Nesta época surgiu também a heresia chamada dos nicolaítas, que durou pouquíssimo tempo e da qual também faz menção o Apocalipse de João. Estes se jactavam de que Nicolau era um dos diáconos companheiros de Estevão encarregados pelos apóstolos do serviço aos necessitados. Pelo menos Clemente de Alexandria, no livro III dos Stromateis, conta sobre ele, literalmente, o que segue: "Este, dizem, tinha uma mulher muito formosa. Depois da ascensão do Salvador, tendo os apóstolos reprovado seu ciúme, trouxe sua mulher a público e permitiu que se entregasse a quem quisesse, pois diz-se que esta prática está de acordo com o dito: 'Deve-se abusar da carne'.” E na verdade, por seguir o que foi feito e dito por simplicidade e impensadamente, os que compartilham sua heresia se prostituem sem a menor reserva. No entanto, eu sei que Nicolau não teve trato com nenhuma mulher que não aquela com quem estava casado, e que de seus filhos, as mulheres chegaram virgens à velhice e o rapaz permaneceu puro. Sendo isto assim, a exposição de sua mulher, da qual tinha ciúmes, no meio dos apóstolos, era um desprezo à paixão, e a abstenção dos prazeres que mais ansiosamente são procuradas ensinava a "abusar da carne", pois creio que, conforme o mandato do Salvador, ele não queria ser escravo de dois senhores, o prazer e o Senhor. Dizem igualmente que Matias ensinava isto mesmo: para a carne: combatê-la e abusar dela, sem consentir-lhe nada para o prazer; e para a alma, fazê-la crescer mediante a fé e o conhecimento. Isto, pois, seja o bastante sobre aqueles que, se na época mencionada empreenderam a tarefa de perverter a verdade, extinguiram-se, contudo, por completo em menos tempo do que leva para dizê-lo.[9]

Daniélou conclui que esta exposição de Eusébio possivelmente resulte daquela “anedota, contada por Clemente de Alexandria, segundo a qual este Nicolau teria oferecido sua mulher a outros. Nossas informações sobre os nicolaítas se reduzem assim a pouca coisa. Nicolau era o equivalente grego de Balaão.”[10]

Se os nicolaístas compunham um primeiro grupo de tendências gnósticas entre os cristãos, o segundo seria o de Cerinto, um judeu-cristão circuncidado, que guardava rigorosamente o sábado. Segundo Eusébio, Cerinto teria sido um autêntico heresiarca:

Sabemos que pelas datas mencionadas Cerinto fez-se cabeça de outra heresia. Caio, a quem já citamos antes, escreve sobre ele o que segue, na disputa que lhe é atribuída: "No entanto, também Cerinto, por meio de revelações que diz serem escritas por um grande apóstolo, apresenta milagres com a mentira de que lhe teriam sido mostradas por ministério dos anjos, e diz que depois da ressurreição o reino de Cristo será terrestre e que novamente a carne, que habitará em Jerusalém, será escrava de paixões e prazeres. Como inimigo das Escrituras de Deus e querendo fazer errar, diz que haverá um número de mil anos de festa nupcial." E também Dionísio, que em nosso tempo obteve o episcopado da igreja de Alexandria, ao dizer no livro II de suas Promessas algumas coisas sobre o Apocalipse de João como recebidas de uma antiga tradição, menciona o mesmo Cerinto com estas palavras: "E Cerinto, o mesmo que instituiu a heresia que toma seu nome, a cerintiana, que quis creditar sua própria invenção com um nome digno de fé. Este é efetivamente o tema da doutrina que ensina: que o reino de Cristo será terreno. E como ele era um amante de seu corpo e inteiramente carnal, sonhava que consistiria do mesmo que ele desejava: fartura do ventre e do que está abaixo do ventre, ou seja: de comidas, de bebidas, de uniões carnais e de tudo aquilo com que lhe parecia que se procurariam estas coisas de uma forma mais bem sonante: festas, sacrifícios e imolação de vítimas sagradas."[11]

Percebe-se o estilo inconfundível de Eusébio e as suas motivações explicitamente apologéticas não o escondem. Tudo depende do modo como a tendência é exposta. Daniélou, sem tais intentos por detrás de sua exposição, afirma que Cerinto ensinava “que o mundo não foi criado por Deus, mas por um poder muito distante e que ignora o Deus que paira por sobre tudo. Jesus nasceu de José e de Maria. Não passa de um homem eminente.”[12] E, mais uma vez, sem as mesmas pretensões apologéticas próprias da historiografia eusebiana, Daniélou apenas complementa que para Cerinto, Cristo desceu sobre Jesus “sob a forma de pomba, na hora do batismo. Anunciou o Pai desconhecido. Depois subiu para o Pai, antes da Paixão.”[13]

Analisando tais concepções, não fazendo, como Eusébio, juízos agressivos ou avaliações teológicas, podemos acompanhar Daniélou, o qual distingue dois dados essenciais nas convicções desta tendência:

Por um lado, Cerinto prolonga uma corrente judeu-cristã heterodoxa. Prende-se a um messianismo de caráter muito materialista. Esse milenarismo lhe era comum com muitos cristãos da Ásia. Mas nega o nascimento virginal de Jesus e sua natureza divina. É um grande profeta sobre o qual desceu o poder divino. Estamos aqui diante de um judeu-cristianismo heterodoxo, como o encontramos no ebionismo.[14]

Há, pelo menos, mais sete grupos associados às origens do gnosticismo, que segundo Daniélou merecem atenção[15]. Nós, porém, optamos por daqui pra frente nos dedicarmos apenas a mais duas questões que geralmente estão relacionadas aos gnósticos. A primeira tem a ver com o gnosticismo de Marcião, o que não parece ser unanimidade entre historiadores e teólogos. Enquanto alguns relacionam Marcião de forma direta ao gnosticismo, outros preferem afirmar que ele apenas assumira alguns de seus elementos, sendo, porém, protagonista de uma tendência própria, separada do gnosticismo. Nossa segunda preocupação, a qual, inclusive, dará desfecho ao presente artigo tem a ver diretamente com a temática da aristocracia espiritual gnóstica. Será nesta última releitura que pensaremos sobre como o gnosticismo se caracterizava e se considerava diante de outras perspectivas, além de observarmos quais eram as suas principais influências filosóficas e as suas mais importantes concepções teológicas.

Até a próxima parte! Pretendo postá-la até terça-feira, ok!

Abraços,
Jefferson


NOTAS:

[1] “As primeiras informações oficiais sobre o achado de um lote de papiros reunidos em uma encadernação, um códice, remontam ao começo do mês de outubro de 1946. Vieram através do diretor do Museu Copta do Cairo, Togo Mina, que acabara de comprar um dos doze códices que hoje compõem a coleção. Mas a descoberta propriamente dita remonta sem dúvida ao fim do ano de 1945, na região circunvizinha da cidade de Nag Hammadi (daí o nome atual da coleção), perto do sítio arqueológico de Chenoboskion (daí aparecer esse nome nos primeiros trabalhos sobre os textos de Nag Hammadi), ao pé da falésia de Djebel-et-Târif, cerca de uma centena de quilômetros do sítio arqueológico de Luxor. Depois de inúmeras trocas de opiniões entre diversos egiptólogos, o anúncio oficial da descoberta foi feito em janeiro de 1948, na imprensa egípcia, e em 8 de fevereiro de 1948 na Academia de Inscrições e Belas-Letras, através de uma comunicação de H.-C. Puech e J. Doresse, em Paris.” KUNTZMANN, R., DUBOIS, D. Nag Hammadi – O Evangelho de Tomé: textos gnósticos das origens do cristianismo. São Paulo: Paulus, 1990, p. 11 e 12. (Documentos do mundo da Bíblia; 6). cf. VIELHAUER, P. História da Literatura Cristã Primitiva. São Paulo: Academia Cristã, 2005, p. 646 a 662.   
[2] WALKER, Wiliston. História da Igreja Cristã. 3. ed. São Paulo: ASTE, 2006, p. 77. “Todas estas obras iluminam o caráter de um gnosticismo cristão. A biblioteca também possui, todavia, obras de proveniência gnóstica que mostram pouco ou nenhum interesse no cristianismo ou familiaridade com ele. De qualquer forma, duas coisas têm ficado claras a partir de um estudo dos materiais gnósticos. A primeira é que o gnosticismo não foi de forma alguma um fenômeno uniforme. Tanto os relatos dos primeiros críticos cristãos como os materiais da própria coleção de Nag Hammadi, indicam que não havia um único corpo de ensinamentos comum a todos os escritos pertencentes a essa corrente na religião antiga. Além disso, contudo, e igualmente importante para uma compreensão do cristianismo do segundo século, agora está claro que nem todo gnosticismo era cristão e que o movimento ou tendência religiosa que ele representa, existiu independentemente da igreja, ainda que ele não preceda em muito o cristianismo.”
[3] “Os ebionitas viviam segundo a Lei judaica e rejeitavam radicalmente a pregação paulina. Negavam a divindade de Jesus, reconhecendo-o, porém, como Messias anunciado pela Lei e pelos profetas. Jesus teria nascido normalmente de José e Maria e fora ungido por Deus, com o Espírito Santo, no Jordão, quando de seu batismo, recebendo a filiação divina.” FRANGIOTTI, Roque. História das Heresias (Séculos I-VII) – Conflitos Ideológicos dentro do Cristianismo. São Paulo: Paulus, 1995, p. 19.
[4] DANIÉLOU, Jean; Marrou, Henri-Irenée. Nova história da Igreja – dos primórdios a São Gregório Magno. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1984, p. 80. (Coleção Nova História da Igreja, vol. 1).
[5] DANIÉLOU, Jean; Marrou, Henri-Irenée. Nova história da Igreja... p. 80.
[6] H.E. VI, 38 – adotaremos este formato, a partir de agora, sempre que fizermos citações diretas da História eclesiástica, de Eusébio de Cesaréia. Também optamos pela tradução da versão bilíngüe (espanhol-grego) organizada por Argimiro Velasco-Delgado, entendendo que esta é a que melhor se aproxima da versão original da obra, de todas as traduções existentes em língua portuguesa, já publicadas no Brasil. cf. EUSÉBIO DE CESARÉIA. História eclesiástica; [tradução Wolfgang Fischer]. – São Paulo: Fonte Editorial, 2002, p. 141 e 142. A versão organizada por Velasco-Delgado é: EUSÉBIO DE CESARÉIA. Historia eclesiástica; [tradução Argimiro Velasco-Delgado, O.P.]. – Madrid: Biblioteca de autores cristianos, 2001.
[7] DANIÉLOU, Jean; Marrou, Henri-Irenée. Nova história da Igreja... p. 80. Tanto elcasaísmo como elquesaísmo estão corretos. Trata-se, apenas, de uma diferença de tradução.
[8] DANIÉLOU, Jean; Marrou, Henri-Irenée. Nova história da Igreja... p. 81.
[9] H.E. III, 29.1-4.
[10] DANIÉLOU, Jean; Marrou, Henri-Irenée. Nova história da Igreja... p. 81.
[11] H.E. III, 28.1-5.
[12] DANIÉLOU, Jean; Marrou, Henri-Irenée. Nova história da Igreja... p. 82.
[13] DANIÉLOU, Jean; Marrou, Henri-Irenée. Nova história da Igreja... p. 82.
[14] DANIÉLOU, Jean; Marrou, Henri-Irenée. Nova história da Igreja... p. 82. Nesta aproximação de Cerinto ao ebionismo que, segundo Daniélou, já teria sido feita por Epifânio, é possível entender porque “Cerinto considera que o mundo não foi criado por Deus, mas por um demiurgo que ignora o verdadeiro Deus. É o gnosticismo propriamente dito, que aparece pela vez primeira em sua formulação precisa. Por este traço, característico da era de Trajano, Cerinto modifica uma corrente judeu-cristã anterior. Encontra-se tanto na heterodoxia judaica quanto no cristianismo.”
[15] Os sete grupos são chamados distintamente de: Simonianos, Menandrianistas, Satornilanistas, Barbelognósticos, Setenses, seguidores de Carpócrates e seguidores de Basílides. Para uma leitura breve sobre cada corrente cf: DANIÉLOU, Jean; Marrou, Henri-Irenée. Nova história da Igreja... p. 82 a 88.  

terça-feira, 21 de junho de 2011

Parte 1 :: texto 1 :: A aristocracia espiritual gnóstica na perspectiva da Nova História - por Jefferson Ramalho

PARTE I - Introdução

Resumo: O objetivo deste artigo é tratar da aristocracia espiritual do gnosticismo existente na época das origens cristãs, tendo como referencial historiográfico a Nova História, contrapondo em alguns momentos o modo apologético com que Eusébio de Cesaréia, historiador do século IV, tratou do mesmo tema. Nova História é como se identifica a Escola dos Annales, sobretudo, sua terceira geração, abordando entre tantas questões da história das ideias e das mentalidades. Observando concentradamente as origens e os desdobramentos do gnosticismo, verificaremos o que mais o caracterizara como movimento portador do que aqui temos chamado de aristocracia espiritual.

Palavras chave: Gnosticismo, aristocracia espiritual, historiografia, Nova História.


Se refletirmos de maneira cuidadosa a respeito da história das experiências religiosas nos mais diversos ramos do cristianismo, iremos perceber que aquilo que chamamos de aristocracia espiritual não diz respeito, apenas, à maneira como os gnósticos se consideravam. Achar-se mais próximo do Sagrado, do Divino, do Transcendente, não parece ser uma condição muito distinta daquela que pode ser identificada nas palavras atribuídas a Jesus de Nazaré, ao apóstolo Paulo, aos Padres do Deserto, a Francisco de Assis e a tantas outras personagens de importância para a história da tradição cristã. Só que para nós, não é só de grandes personagens que vive a História! Ao contrário, a História é construída, também, e quem sabe, sobretudo, pelos que são considerados sem importância. Neste sentido, cabe nossa reflexão a respeito do gnosticismo e seus protagonistas, pois conquanto tenham sido considerados hereges já pelas primeiras concepções ortodoxas da teologia cristã, entendemos que eles tiveram sua importância na história da religião cristã, ainda que tidos como seus adversários.

Não pretendemos fazer uma apologia em sentido contrário. Antes, nosso objetivo consiste em buscar uma compreensão dos processos. Não nos importa se os gnósticos estavam corretos ou equivocados em suas múltiplas e supostamente controvertidas interpretações. O que queremos é identificar suas origens e seus desdobramentos, tomando como referenciais teórico-metodológicos duas escolas específicas, já que tem sido este o nosso objeto de pesquisa: uma escola historiográfica de matriz eusebiana sempre dedicada a triunfalismos e personalismos, típicos do que será conhecido somente no século XIX como historiografia positivista e outra escola historiográfica mais contemporânea que surge e se oficializa no século XX com o intuito de romper com o tradicional estilo de escrever a história valorizando apenas datas e fatos políticos tidos como determinantes e personagens supostamente mais importantes, demonstrando tratar-se de uma forma historiográfica tendenciosa e exclusivista*.

Visto em nota que a história pode ser considerada uma ciência, há que se levar em conta que é em seu debate com as ciências da religião que uma terceira vertente se encontra transitando. Estamos nos referindo à filosofia da religião. Neste sentido, nossa preocupação historiográfica no presente artigo – e nisso não podemos nos perder – será a de verificar o problema da aristocracia espiritual estabelecendo um diálogo com o olhar da filosofia da religião e não da teologia ou da história meramente narrativa.

Neste artigo não entraremos nas discussões políticas, especificamente sobre processos de institucionalização da religião cristã. Também não nos preocuparemos com os desdobramentos da aristocracia espiritual cristã entre místicos e místicas medievais como Mechtild von Magdeburg e Marguerite Porete. Nossas intenções se concentram no estudo do gnosticismo, suas origens e seus primeiros desdobramentos.

Contudo, não nos privaremos de algumas inquietações: até que ponto essa aristocracia espiritual identificada neste gnosticismo acusado de heresia pela ortodoxia cristã não poderia estar presente, também, nas vertentes chamadas de democracia espiritual, dentro do próprio contexto cristão? Seria exagero concluir por meio de uma releitura que o Jesus de Nazaré dos textos canonizados e não somente aquele Jesus dos textos tidos como apócrifos também seria uma espécie de aristocrata espiritual? Sabendo que Paulo, aquele que é visto como um dos pilares da igreja primitiva ao lado de Pedro, fez certas afirmações acerca de si próprio nas cartas que lhe são atribuídas, seria um equívoco identificá-lo como um aristocrata espiritual? Para encerrarmos, as afirmações acerca de suas próprias condições, suas experiências místicas, seus rompimentos com aquela cristandade corrompida em processo de institucionalização nos tempos de Constantino, seria demais concluir que os Padres do Deserto também eram aristocratas espirituais, já que para eles só seria possível estar em contato direto com a divindade por meio dos exercícios espirituais que eles praticavam como a solicitude, o silêncio, o retiro, o isolamento, a ascese, a contemplação? Assim sendo, qual ser religioso não é um aristocrata espiritual? O fato é que na aristocracia espiritual existe uma noção de liberdade para, entre outras coisas, debater com a divindade devido à suposta intimidade que há entre esta e o ser religioso.

O aristocrata espiritual se acha no direito de discutir com a divindade acerca, por exemplo, da condição em que ele se encontra. O gnóstico era assim. Ele não admitia fazer parte de uma realidade tão decadente, não compatível à sua condição de ser. Para o gnóstico, o seu lugar não era o mundo, ao lado de seres humanos não portadores do conhecimento absoluto que somente ele, o gnóstico, possuía. Tal condição tratava-se de uma espécie de conhecimento em meio ao não conhecimento, estar sem fazer parte e sem porquê de fazer parte. Seguindo Hans Jonas, a chamada alteridade solitária se dá quando o ser humano não se sente participante de qualquer coisa, havendo um pânico e um medo dos quais é necessário se desintoxicar. É neste processo de desintoxicação que ocorre uma espécie de luta interior, uma batalha, uma ascese, uma catarse, uma limpeza. A comparação com a tradição monacal cristã é inevitável, sobretudo, considerando as motivações internas para se distanciar e se separar do mundo, das relações sociais vistas por eles como corrompidas.

Na aristocracia gnóstica, isso tudo tem a ver com a consciência de que o eu do ser humano não lhe pertence, mas o deus demiurgo é que lhe habita. Para o próprio gnóstico, ele é quem escapa da alienação que atingiu quase toda a humanidade, com a qual ele não tem qualquer obrigação. Se o gnóstico é aquele que experimenta a liberdade autêntica do eu, ele se vê no poder de se considerar superior a tudo e a todos.

Há que se tomar cuidado no exercício comparativo, pois existem nítidos desencontros – não apenas encontros – entre as correntes gnósticas e os estóicos ou mesmo os monges cristãos. É bom frisar, por exemplo, que entre os gnósticos não havia proselitismo, pois eles não queriam e não precisavam conquistar nada nem ninguém. Daí a pergunta: por que, então, dos escritos gnósticos? Embora em meio à complexidade e a amplitude do gnosticismo – o que veremos em nosso tópico seguinte – poderia até haver um grupo pequeno de gnósticos que tenha se preocupado com a expansão de suas perspectivas, embora o gnosticismo por natureza não fosse dado a esta prática. Seus escritos não tinham pretensões do tipo evangelizadoras, como parece claro nos evangelhos sinóticos, mas eram produzidos para “consumo” deles próprios.


Vamos, agora, para uma releitura propriamente historiográfica do gnosticismo, suas origens e seus desdobramentos. Historiadores como Jean Daniélou e Wiliston Walker muito nos ajudarão nesta tarefa.

Na próxima a gente continua nossa conversa.

Forte abraço!

NOTAS

* Escola historiográfica eusebiana, assim a chamamos por se tratar daquela iniciada com a obra clássica de história da religião cristã intitulada História eclesiástica, escrita por Eusébio de Cesaréia (c. 260 – c. 339), na primeira metade do século IV de nossa Era. Desde então, a história da religião cristã a tomou como modelo historiográfico. Tanto aqueles historiadores da igreja que são considerados primeiros sucessores de Eusébio, passando pelos que viveram no Medievo e na época das Reformas como Matias Flácio do lado protestante e César Barônio do lado católico, até aqueles mais recentes que procuram escrever a história do cristianismo com o objetivo explícito de tornar evidente um discurso teológico específico, são os que dão forma a tal escola. Dadas as devidas proporções e não desconsiderando as diferenças, entendemos que essa escola eusebiana de história da igreja em muito se aproxima do método proposto pela historiografia positivista do século XIX, a qual teve como teórico de maior destaque o alemão Leopold von Ranke (1795 – 1886). Para ele que é considerado pai da história científica, o historiador deve simplesmente narrar o passado tal como ocorreu, recorrendo, apenas, às fontes consideradas oficiais, pois somente estas são dignas de credibilidade. Neste sentido, Ranke e toda a escola positivista estariam contribuindo para uma história triunfalista, valorizadora de grandes datas e personagens e reduzida a uma história política. O ponto de convergência que temos identificado entre Ranke e Eusébio é a semelhança que há entre as preocupações de ambos quando se propuseram escrever uma história do cristianismo. Eusébio, em sua História eclesiástica, não esconde que sua convicção consiste em relacionar a história da igreja à história da sucessão apostólica, ou seja, falando dos apóstolos e bispos da história – naquele caso, dos primeiros trezentos anos de cristianismo – não havendo qualquer interesse em mencionar a história dos cristãos leigos, ou seja, daqueles que embora fossem cristãos não eram superiores eclesiásticos. Ranke, curiosamente, escreveu uma História dos Papas, se deixando entender como alguém que reduz a história do cristianismo à história de seus líderes. Para nós, indiscutivelmente, este é um ponto de convergência entre Ranke e Eusébio. Já a escola historiográfica contemporânea que faz o contraponto, rompendo definitiva e oficialmente com o positivismo rankeano, é a chamada Escola dos Annales. Esta foi iniciada em 1929, a partir da publicação da revista acadêmica de História intitulada Annales d’Histoire Economique et Sociale. Os dois historiadores que lideraram as primeiras edições dessa revista foram o medievalista Marc Bloch e o modernista Lucien Febvre, então professores da Universidade de Estrasburgo, na França. Uma segunda geração desta escola historiográfica foi liderada por Fernand Braudel, por volta de 1950. A partir da década de 70, intelectuais como Jacques Le Goff e Michel Foucault passavam a liderar a terceira geração. Há quem afirme que desde 1988 uma nova geração desta escola tenha sido iniciada, tendo historiadores como Peter Burke a compondo. Entre as propostas de inovação historiográfica dos Annales estão a problematização da história, o novo conceito de fonte histórica, a longa duração, o conceito de mentalidades e a interdisciplinaridade que propõe o diálogo da história com as ciências sociais, especialmente, a sociologia.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Venha tomar café comigo em minha nova sala de estar...

Venha tomar café comigo em minha nova sala de estar... Vamos conversar sobre Filosofia, Sociologia, História e Mitologia. Isso mesmo! É isso a Religião hoje para mim: Mitologia! Se ela, apesar de suas peculiares abstrações, consegue construir significados concretos à existência humana, é em outra sala que se discute isso; e nesta não pretendo entrar pelo menos por um bom tempo. Quem sabe, nunca mais! No máximo, com os meus colegas-alunos dos seminários e institutos teológicos nos quais aprendo ensinando e ensino aprendendo.

Entre a Filosofia, a História, a Sociologia e a Ciência da Religião é que se construirá o nosso diálogo. Aqui, neste novo espaço, pretendo ampliar aquelas provocações postadas em http://jeffersonramalho.blogspot.com/

Já vinha planejando este novo blog, porém, por diferentes razões resolvi adiantar o processo. Portanto, a ideia de ampliar nossas antigas discussões e provocações vem calhar neste momento, unindo o útil e necessário ao agradável e pretendido.

Neste espaço mais dedicado à interdisciplinaridade acadêmica, fugiremos daqueles velhos e já ultrapassados discursos religiosos com cara de propostas alternativas. Aliás, apesar de minha formação em Teologia, não quero que neste blog fique evidente aquilo no que creio e no que descreio. Somente, quero conversar sobre o que vale a pena.

A temática Religião, obviamente, não deixará de existir, mas sempre com os olhares da Ciência da Religião, da História, da Filosofia e da Sociologia, menos da Teologia. Esta, por mais aberta que pareça, em minha segura opinião ainda é e sempre será tendenciosa, confessional, apologética e não científica.

Não que não haja formas científicas de pensar teologicamente, mesmo porque estas são as poucas faces da teologia que conseguem estabelecer diálogos saudáveis diante do pluralismo religioso tão consolidado em nosso tempo. Contudo, ainda assim, não é de teologia que pretendo conversar, pelo menos por um tempo. Quem sabe um dia!

Devido à minha formação, não há como negar e evitar que nossas principais conversas se darão no campo da História e da Historiografia. Aliás, esse campo tem sido aquele no qual tenho jogado há algum tempo. Ainda que discutindo o problema das relações entre Religião e Política, Igreja e Estado, pouco me importa o fenômeno religioso por detrás das questões com as quais venho estudando, mas sim os processos e, principalmente, as invenções e imaginações que compõem tais processos.

São processos históricos muitas vezes de curta, média ou longa duração, que produzem efeitos para além de suas características e ambiências primeiras. Se o assunto for história política, que seja uma Nova História Política; se for Religião, que seja no campo da História da Religião, nunca no da história religiosa da Religião. E que consigamos chegar à compreensão e identificação de reflexos na economia e na sociedade, do que quer que venhamos estudar. Assim nossas reflexões farão sentido!

O mesmo serve para as nossas leituras e releituras filosóficas, sociológicas e antropológicas daquilo que for proposto como discussão.

Cabe aqui uma ressalva muito importante: apesar de nossa discussão ser acadêmica, não queremos ser incompreendidos, mas o contrário. A simplicidade na linguagem, no texto, é o que mais almejamos. Esse blog não é espaço para exibicionismo de alguém – eu, por exemplo – que tem muito mais a aprender do que a ensinar.

Soltarei palavrões nos momentos de raiva, confissões nos momentos de desabafo, respostas quando entender ser necessário, bem como darei o direito de ficar em silêncio diante de comentários que implícita ou explicitamente não pedirão réplicas.

Assim se construirá este nosso novo espaço e eu espero que você possa visitá-lo sempre, apreciando as postagens, contribuindo com comentários e acrescentando com suas ideias, pois é assim – somente assim – que se constrói o conhecimento: coletivamente!

Agora me diga: açúcar ou adoçante?  ;-)

Até logo!

Jefferson