terça-feira, 26 de julho de 2011

Haydn: "Surprise" Symphony nº 94 in G-Mov. Parte 4

Haydn seguiu a família em todas as suas deslocações: viveram no Palácio Eszterháza em Eisenstadt, o seu palácio de inverno a cerca de 50 km. de Viena, e no Palácio Eszterháza em Fertöd, o grande palácio da família, na Hungria. Como kappelmeister, a Haydn eram confiadas uma grande quantidade de responsabilidades, incluindo a composição, a regência da orquestra, a execução de música de câmara com e para seus patrões, e desenvolvendo mesmo algumas produções de ópera italiana, dramas heróicos como Armida ou dramas cómicos como La Vera Constanza para o pequeno teatro do palácio. Tendo acesso livre à orquestra privada do príncipe e regendo-a Haydn escreveu e interpretou mais de 100 sinfonias, experimentando como ninguém o fizera neste domínio. Poucos compositores no mundo teriam nesse tempo as condições que haydn teve para a experimentação musical. Apesar do isolamento mundano que sofria, a partir de Ezsterhàza, a fama das suas novas formas musicais ultrapassava já as fronteiras do império austríaco até se ter tornado um dos compositores mais festejados da Europa. Haydn, sob autorização do príncipe começa a viajar. Em 1770 pode já dirigir as suas próprias obras em Viena. Em breve viajará a Paris a convite da austríaca Maria Antonieta. Desta época datam os tremendos sucessos das Sinfonias de Paris, tocadas perante a corte francesa e a versão orquestral das Sete Últimas Palavras de Cristo. Durante os quase trinta anos que Haydn trabalhou para os Eszterházy, produziu uma enorme quantidade de obras e o seu estilo musical tornou-se maduro. Apesar do isolamento mundano que sofria, a fama das suas novas formas musicais ultrapassava já as fronteiras do império austríaco. Gradualmente, Haydn passou a escrever tanto para seus patrões quanto para a publicação. Haydn, sob autorização do príncipe começa a viajar. Desta época datam as Sinfonias de Paris, tocadas perante a corte francesa e perante a austríaca Maria Antonieta e a versão orquestral das Sete Últimas Palavras de Cristo.


quarta-feira, 20 de julho de 2011

Haydn: "Surprise" Symphony nº 94 in G-Mov. Parte 3

Em 1749, Haydn, com 18 anos, deixou de ter voz para cantar e foi expulso. Desta forma, sem trabalho e na pobreza, chegando mesmo a dormir na rua, foi lançado na boémia vienense como músico ambulante. Durante este período, que durou cerca de dez anos, Haydn acabou por introduzir-se nos meios intelectuais e desenvolveu várias atividades, entre as quais, a partir de 1753, a de secretário do então famoso compositor italiano Nicola Porpora, com quem acabou por aprender os fundamentos da composição. A sua formação é porém devida a si próprio a partir do estudo voluntário do tratado de contraponto Gradus ad Parnassum do então compositor da corte, Fux (1660-1741). Outra grande influência foi Carl Philipp Emannuel Bach, o segundo filho de johann Sebastian Bach. É a partir de 1750, com os novos conhecimentos que foi obtendo que teve a ensejo de escrever missas e a sua primeira ópera (hoje perdida) Der Krumme Teufel. Em 1757, o barão von Fürnberg convida-o a participar nos serões de música de câmara em Weinzerl, nas próximidades de Melk. Aí Haydn compõe os primeiros divertimentos e outras peças para cordas que de um só golpe estabelecem a sua reputação e o sucesso de um novo tipo de formação musical; o quarteto de cordas.

fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Joseph_Haydn

sábado, 16 de julho de 2011

Haydn: "Surprise" Symphony nº 94 in G-Mov. Parte 2

Haydn nasceu no seio de uma família modesta em 1732, na vila de Rohrau, próxima à fronteira com a Hungria, filho de Matthias Haydn e Maria Koller. Ninguém da família de Haydn estava ligado à música, apesar de Matthias Haydn ser um entusiasta da música folclórica e tocar harpa de ouvido. De acordo com os apontamentos autobiográficos de Haydn, a sua infância foi bastante impregnada de musicalidade dando como exemplo os frequentes serões de canto com seus vizinhos. Os pais de Haydn, cedo perceberam que seu filho tinha dotes musicais e compreenderam que ficando em Rohrau, Joseph não teria hipótese de obter qualquer aperfeiçoamento musical sério. Por esta razão, aceitaram a proposta de um dos seus parentes, Johann Matthias Franck, mestre de capela em Hainburg, com o qual Haydn passaria a viver e a ter aulas de música. Haydn partiu com Franck e nunca mais voltou a viver com seus pais. Haydn tinha então apenas seis anos de idade. A vida na casa de Franck não foi fácil para Haydn, onde se recordou de ter passado fome e humilhações. Contudo aí aprendeu a tocar cravo e violino. Haydn, tendo uma bela voz infantil, iniciou-se também a cantar na secção de soprano no coro da igreja. Em 1740, Georg von Reutter, director de música na catedral de Santo Estêvão, em Viena, impressionou-se com a musicalidade de Haydn. Reutter nesse tempo viajava pela Áustria procurando pequenos cantores talentosos. Descoberto desta forma, Joseph Haydn foi enviado a Viena, onde trabalhou durante os nove anos seguintes como cantor, os últimos quatro já na companhia de seu irmão mais novo Michael.

fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Joseph_Haydn

sábado, 9 de julho de 2011

Haydn: "Surprise" Symphony nº 94 in G-Mov. Parte 1

Franz Joseph Haydn (Rohrau, 31 de março de 1732Viena, 31 de maio de 1809) foi um dos mais importantes compositores do período clássico. Personifica o chamado "classicismo vienense" ao lado de Wolfgang Amadeus Mozart e Ludwig van Beethoven. A posteridade apelidou este grupo como "Trindade Vienense". Para além disso é considerado como um dos autores mais importantes e influentes da história da música erudita ocidental com uma carreira que cobriu desde o fim do Barroco aos inícios do Romantismo. Ele é à vez a ponte e o motor que permitiram a que esta evolução sucedesse. Era irmão do igualmente compositor Michael Haydn, colega de Mozart em Salzburgo, e do tenor Johann Evangelist Haydn, que mais tarde Joseph fará vir para Eszterhaza em 1763. Tendo vivido a maior parte da sua vida na Áustria, Haydn passou a maior parte de sua carreira como músico de corte para a rica família dos Eszterházy. Isolado de outros compositores, foi, segundo ele próprio, “forçado a ser original”. O seu génio foi amplamente reconhecido durante a sua vida.



quarta-feira, 6 de julho de 2011

Conclusão :: texto 1 :: A aristocracia espiritual gnóstica na perspectiva da Nova História - por Jefferson Ramalho

Conclusão

Tentamos fazer uma reflexão sobre o gnosticismo a partir de uma historiografia proposta pela Nova História. Detivemos-nos, somente, no campo das ideias, da mentalidade gnóstica. Recorremos a algumas poucas referências que já têm estudado a história da religião cristã seguindo parâmetros historiográficos que não se reduzem ao exercício da mera narrativa, do factual, mas que se mergulham num empreendimento de problematização da história. Aqui, porém, mais que uma história problema e totalizante, delimitamos nosso trabalho na compreensão daquilo que o gnosticismo pensava.

Foi naquele contexto mítico no qual a religião cristã nasceu que a gnôsis já se fazia presente. Além de elementos filosóficos, ela se apresentou como uma doutrina soteriológica, que se fundamentava em revelações supostamente espirituais. A diversidade que lhe era peculiar demonstrou suas complexidades. Tratava-se de um movimento sem unidade religiosa, organizacional, institucional. Tanto houve diversos tipos de gnôsis que é possível falar não somente em gnosticismo cristão, mas também judaico, grego, egípcio e até islâmico. Há quem atribua suas origens ao zoroastrismo.

Entendemos, sobretudo, que apesar da diversidade, o gnosticismo possuía uma condição de superioridade espiritual por ele identificada que aqui optamos por chamar de aristocracia espiritual. Contudo, não concluímos que esta condição esteve presente unicamente nessa corrente religiosa ao longo da história. Toda tendência de espiritualidade cristã ou não cristã sempre carrega consigo certa aristocracia espiritual. Típica dos movimentos religiosos exclusivistas, essa condição permanece existindo em boa parte das confissões de fé existentes no mundo.

Afirmarmos que a aristocracia espiritual é uma das várias razões e argumentos do fundamentalismo religioso continuar existindo, talvez não seja um exagero. Normalmente, quem defende a supremacia de uma bandeira religiosa e afirma ter tido sua vida transformada pela divindade que se esconde por detrás daquela bandeira, além de promover a intolerância e a violência – verbal e/ou física – tende a considerar sua espiritualidade superior a qualquer outra.

Neste sentido, qual tendência religiosa exclusivista não se mostra detentora de uma aristocracia espiritual como a que contemplamos nessa releitura que fizemos do gnosticismo? Com tantas ofertas religiosas existentes na atualidade, é possível encontrar mais ou menos propostas que se caracterizam pela aristocracia espiritual? Até que ponto as críticas feitas por correntes cristãs ortodoxas ao gnosticismo fazem sentido? Não seriam os monasticismos, o calvinismo, o pentecostalismo e tantas outras ramificações cristãs as grandes herdeiras e mantenedoras da aristocracia espiritual gnóstica?

Em alguns dias, um novo artigo, ok!

Abaixo, toda a bibliografia utilizada para a produção deste.

Abraços,
Jefferson

Bibliografia
DANIÉLOU, Jean; Marrou, Henri-Irenée. Nova história da Igreja – dos primórdios a São Gregório Magno. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1984. (Coleção Nova História da Igreja, vol. 1).
EUSÉBIO DE CESARÉIA. Historia eclesiástica; [tradução Argimiro Velasco-Delgado, O.P.]. – Madrid: Biblioteca de autores cristianos, 2001.
EUSÉBIO DE CESARÉIA. História eclesiástica; [tradução Wolfgang Fischer]. – São Paulo: Fonte Editorial, 2002.
FRANGIOTTI, Roque. História das Heresias (Séculos I-VII) – Conflitos Ideológicos dentro do Cristianismo. São Paulo: Paulus, 1995.
JONAS, Hans. The Gnostic Religion – The Message of the Alien God and the eginnings of Christianity. 2. ed. Boston, Beacon Press, 1999.
KUNTZMANN, R., DUBOIS, D. Nag Hammadi – O Evangelho de Tomé: textos gnósticos das origens do cristianismo. São Paulo: Paulus, 1990. (Documentos do mundo da Bíblia; 6).
PÉTREMENT, Simone. Le dieu separe – les origines du gnosticisme, Paris, Ed. du Cerf, 1984.
VIELHAUER, P. História da Literatura Cristã Primitiva. São Paulo: Academia Cristã, 2005.
WALKER, Wiliston. História da Igreja Cristã. 3. ed. São Paulo: ASTE, 2006.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Parte 4 :: texto 1 :: A aristocracia espiritual gnóstica na perspectiva da Nova História - por Jefferson Ramalho

PARTE IV - A aristocracia espiritual gnóstica

É possível encontrar nos escritos gnósticos muito do seu conteúdo de convicções, suas características, seus mistérios. O que os escritos gnósticos “têm a oferecer é sempre um ensino secreto, revelado a poucos e misterioso em sua própria substância.”[1] Muito do que consta nesses textos está carregado de teor mítico. Todo o conhecimento revelado ao gnóstico ganha aquela forma tipicamente mitológica sobre condições supostamente transcendentais, tendo, contudo, características próprias. Nos mitos gnósticos, os atores não são aquelas divindades como as que encontramos nas tradições primitivas. Antes, elas “são noções filosóficas ou teológicas abstratas, ou símbolos religiosos genéricos, que são utilizados não como símbolos, mas como nomes – ‘remitologizados’, como eram, e feitos sujeitos de uma narrativa.”[2]

Não se passa pelos escritos gnósticos sem identificar os seus elementos sincréticos e fantasmagóricos, pois neles são encontrados aspectos da cosmogonia judaica, da mitologia antiga politeísta, da magia, da astrologia popular, das filosofias médio-platônica, judaico-helenística e, até mesmo, da neo-pitagórica.

O gnóstico acreditava ser um eleito deslocado, ou seja, alguém inserido em uma realidade que não era a dele. Embora o termo gnosticismo tenha surgido somente na Modernidade, o termo gnóstico era comum na época, sendo usado, inclusive, pelos Padres da Igreja que os combatiam. Alguns heresiólogos costumavam chamar os gnósticos de membros da seita do demiurgo, embora eles não fossem um grupo religioso organizado. Contudo, suas convicções são religiosas. Eles acreditavam manter uma relação mútua com a divindade a quem chamavam de Pai Silencioso. Este, por sua vez, de forma processual se dava a conhecer ao gnóstico.

“Se tivéssemos que resumir o máximo possível o conteúdo da gnôsis que é revelada aos eleitos, diríamos que é a certeza de que eles são ‘pessoas deslocadas’ na presente realidade.”[3] E como complementa Walker, os gnósticos se consideravam “seres-espíritos oriundos do mundo secreto de Luz e Conhecimento, perdidos e cruelmente aprisionados no cosmo visível, material, das trevas e da ignorância, contudo destinados a retornar inevitavelmente ao seu verdadeiro lar.”[4]

Para um cristão gnóstico chamado Teódoto, na ocasião do batismo, o que de fato liberta o humano não é o rito de lavagem em si, mas o conhecimento, a gnôsis, que o capacita para saber quem ele era e quem ele se tornou, do que foi redimido, para qual condição foi inexplicavelmente atirado e para qual será conduzido a viver eternamente. Os mitos gnósticos, em certo sentido, pretendem oferecer respostas a essas perguntas: O que sou? Por que estou aqui? Uma vez redimido, voltarei ao Pai Silencioso? Tendo tal conhecimento, o gnóstico começa a se conhecer. É essa espiritualidade que permeia os textos gnósticos, demonstrando qual a mentalidade que fundamenta todo esse comportamento que aqui temos chamado de aristocracia espiritual.

Não seria, contudo, um exagero propor que o gnóstico, devido à sua postura, sofrera repressões ao afirmar suas experiências. Sua mente, segundo ele, foi tomada por uma certeza a partir daquilo que ele próprio teria ouvido, visto e sentido. Como dissera o já jansenista Blaise Pascal, essa certeza não parece muito distante do dilaceramento que ocorre entre a pessoa e o mundo, quando se consolida o encontro com o que a tradição cristã chama de Graça. Daí, estabelecer uma aproximação da mentalidade gnóstica com as concepções agostinianas ou mesmo com as ênfases calvinistas, não desconsiderando as devidas diferenças e proporções, não nos parece um equívoco[5].

Existe uma dualidade explícita nos registros escritos do gnosticismo, nos quais a divisão em um domínio de trevas e outro de luz fora concebida desde os primórdios. Nesses mitos, explica-se o deslocamento dos gnósticos como ato conseqüente de um choque entre os dois domínios. Segundo Walker, há outro tipo de mito que teria preponderado entre os cristãos gnósticos que viveram no século II, no qual se afirma que o chamado domínio de trevas, ou seja, o cosmo, não seria primordial, não havia no princípio, mas era secundário e conseqüente de uma queda resultante de um grande equívoco cometido no mundo superior. Conforme este mito, um membro tido como o mais inferior de todos, chamado Sabedoria, errou ao pretender conhecer o Pai Silencioso. Para redimir a Sabedoria de seu erro, uma nova realidade se estabeleceu. “Sua redenção e restauração à ordem, entretanto, impôs o exílio desse erro e paixão do mundo superior; e como resultado dessa expulsão do mal, iniciou-se um processo pelo qual um cosmo inferior veio a existir.”[6] Para os cristãos, a redenção não passa de uma representação ou imagem da dramática redenção que, antes, se dá no mundo-espírito.

A analogia entre a representação imagética da redenção e a que ocorre acontece no mundo-espírito se desenvolve de forma calculada, enfatizando a separação entre as duas ordens que o dualismo gnóstico tanto defende. Não há, portanto, uma união das ordens. Como afirma Walker, “o mundo-luz é feito de espírito (pneuma), ao passo que o mundo inferior é feito de alma (psuchê) e matéria (hulê). Da mesma forma, os dois mundos são comandados por duas deidades diferentes.”[7] Uma é a imagem do Demiurgo, o Modelador, o mesmo Deus Criador da Bíblia Hebraica. Para os gnósticos, ele não é membro do mundo-espírito, embora os autores hebreus o afirmem ser o único Deus, mas é ignorante quanto à origem verdadeira das coisas, não passando de uma imitação, como explica Walker, “da Mente da qual o mundo-espírito e seus habitantes emanam”[8]. Daí, possivelmente, tenha surgido toda a rejeição de Marcião para com a tradição judaica. Se muito, o Deus da Bíblia Hebraica é composto de uma simples coisa-alma, como os próprios gnósticos chamavam.

Assim, os gnósticos por eles próprios eram constituídos de um espírito verdadeiro e sua autêntica habitação é a Plenitude, junto ao Pai Silencioso. Mais do que isso, o gnóstico considerava-se um com o Pai Silencioso, devido à intimidade e superioridade que julgava possuir em contraste da condição inferior, de queda e ignorância, de qualquer outro ser humano. Aí reside a fidalguia que temos chamado desde o início de aristocracia espiritual.

Essa relação de unidade com o Pai Silencioso afirmada pelos gnósticos, grosso modo, justifica o porquê da identificação que eles tiveram por bastante tempo com o Evangelho de João, cuja personagem protagonista, o Logos, teria sido o gnóstico por excelência[9]. Criam que o Pai Silencioso lhes contava – e somente a eles, os gnósticos – o que precisariam saber enquanto permanecessem nessa habitação cósmica, nessa estadia apenas temporária, pois para o gnóstico, o mundo é ruidoso, barulhento, insuportável[10].

Para os gnósticos cristãos do século II havia três grupos de pessoas: a) aquelas irremediavelmente destinadas à perdição eterna, à destruição, b) aquelas que pertenciam ao Deus da Bíblia Hebraica, os cristãos comuns, que receberiam uma redenção de segunda classe, c) por fim, os gnósticos espirituais, destinados à Plenitude[11].

O Cristo dos cristãos gnósticos, paradoxalmente, não era considerado a encarnação do Pai Silencioso, mas o próprio. Nessa perspectiva gnóstica, existiam dois Cristos: um que era o Messias prometido pelo Deus-Criador da Bíblia Hebraica e o outro que era o verdadeiro Redentor, Salvador, que veio da Plenitude para a qual todo gnóstico acreditava que retornaria. Ao conhecimento proveniente desta concepção cristológica defendida por cristãos gnósticos, obviamente apenas estes tinham acesso.

Há que se tomar um cuidado que cristãos ortodoxos não têm ao refutar os gnósticos, que tem a ver com a capacidade e honestidade hermenêutica destes. Suas interpretações não tinham qualquer interesse em provocar toda aquela tensão entre as posteriormente chamadas ortodoxia e heterodoxia. Como afirma Walker, “o que sabemos dos grandes mestres gnósticos cristãos do início do segundo século indica que eles eram intérpretes sinceros e significativos da tradição e literatura cristã primitiva.”[12] Concomitantemente, não é exagero concluir que os mesmos mestres do gnosticismo cristão, seguidores de Valentino, como Teódoto, se inspiraram na linguagem de Epístolas atribuídas a Paulo, especialmente em suas concepções de “carnal”, “psíquico” e “espiritual”. Outro seguidor de Valentino, chamado Ptolomeu, em boa parte de sua Carta a Flora analisa as “fontes” da Lei judaica, buscando identificar a presença dos mesmos níveis da existência humana: a matéria, a alma e o espírito.

Na próxima semana, nossas conclusões, para posteriormente conversarmos sobre outro assunto.

Abraços e até lá,
Jefferson


NOTAS:

[1] WALKER, Wiliston. História da Igreja Cristã... p. 77 e 78. “Nem todo mundo é capaz do conhecimento (gnosis) que o gnóstico possui, e uma (embora não a única) razão para isso é que o conhecimento se refere a coisas que não são aparentes – verdades sobre uma realidade primordial que não estão apenas além do pensamento e da experiência ordinários, mas positivamente são estranhas a ele. Há, portanto, uma qualidade deliberadamente semelhante a enigma, acerca de muito do discurso gnóstico, um deleite no obscuro, no complexo e no mistificador.”
[2] WALKER, Wiliston. História da Igreja Cristã... p. 78.
[3] WALKER, Wiliston. História da Igreja Cristã... p. 78.
[4] WALKER, Wiliston. História da Igreja Cristã... p. 78.
[5] cf. PÉTREMENT, Simone. Le dieu separe – les origines du gnosticisme, Paris, Ed. du Cerf, 1984. Ao contrário do que costuma ser defendido por tendências cristãs ortodoxas, o gnosticismo pode ser compreendido a partir das origens cristãs. Mais do que isso, os principais mitos gnósticos possuem relações diretas com o começo da tradição escrita cristã, inclusive aquela que acabou canonizada, ou seja, o Novo Testamento. Se Graça significa liberação e revelação, não é errado concluir que tal conceito tem suas origens no gnosticismo, mais que no cristianismo. Agostinho, ao dialogar com a filosofia platônica para defender suas convicções teológicas, não parece trazer uma reflexão original, pois no gnosticismo já parecia existir uma perspectiva semelhante. Quando nos séculos XVI e XVII, os chamados reformadores e reformados, especialmente os calvinianos e calvinistas, fazem um resgate da soteriologia agostiniana para defender suas ideias contra a valorização que a Igreja Católica atribuía às boas obras, eles acabam se aproximando, sobremaneira, das concepções gnósticas de eleição, de escolha divina. 
[6] WALKER, Wiliston. História da Igreja Cristã... p. 79. Neste cosmo inferior passaram a ficar aprisionados todos os chamados elementos-espíritos exilados, o que não parece muito diferente da narrativa sagrada da cosmogonia judaico-cristã. Segundo Walker, após tal queda, “vieram a existir dois mundos paralelos: o mundo original, mundo divino de coisa-espírito, que é denominado ‘a Plenitude’ (plêrôma), e o mundo inferior, mundo material, que algumas vezes é denominado ‘o Vazio’ (kerôma). É característica do pensamento gnóstico cristão enfatizar o paralelismo entre estas duas ordens. Tudo o que é verdadeiro e importante acontece na Plenitude, mas é imitado de uma maneira transposta no nível inferior do cosmo visível.”
[7] WALKER, Wiliston. História da Igreja Cristã... p. 79.
[8] WALKER, Wiliston. História da Igreja Cristã... p. 80.
[9] O primeiro comentário do Evangelho de João de que se tem notícia foi escrito por um gnóstico chamado Heráclon, discípulo de Valentino.
[10] “É somente através da graça de uma revelação que eles se tornam conscientes de que são ‘formados’ para a restauração a seu estado apropriado. Uma vez que recebem essa ‘formação em conhecimento’, contudo, eles compreendem que são os eleitos – seres de uma ordem superior mesmo ao Deus-Criador das Escrituras judaicas e portanto libertos dos embaraços da ordem-mundo opressiva que ele tenta governar. Inevitavelmente, então, sua situação como recipientes da gnôsis os coloca à parte das outras pessoas.” WALKER, Wiliston. História da Igreja Cristã... p. 80.
[11] “É desnecessário dizer, esse sentimento de constituir uma elite cuja salvação estava assegurada e cujo status os situava além da preocupação com os simples exteriores da vida no cosmo, fazia dos gnósticos próximos perturbadores na vida das igrejas. Eles frequentemente professavam indiferença à vida de ‘fé e obras’ e a necessidade de testemunho pelo martírio. Eles tinham, ou pareciam ter, pouco compromisso com a vida comunitária, institucional da igreja. Eles aparentemente estavam, pelo menos na impressão que passavam para os outros, literalmente bastante acima de tudo isso. [...] Os gnósticos cristãos eram distintos dos outros pelo fato de que eles identificavam o portador da revelação salvífica com o Cristo ou Jesus.” WALKER, Wiliston. História da Igreja Cristã... p. 80.
[12] WALKER, Wiliston. História da Igreja Cristã... p. 81. É possível que esses mestres gnósticos seguissem uma tradição secreta, a qual, segundo eles próprios, teria sido iniciada com as revelações de Cristo aos discípulos após a ressurreição. Boa parte dos escritos gnósticos tem a ver com essas revelações.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Parte 3 :: texto 1 :: A aristocracia espiritual gnóstica na perspectiva da Nova História - por Jefferson Ramalho

PARTE III - O gnosticismo de Marcião

Conquanto seja um movimento subdividido em diversas correntes, o gnosticismo de maneira geral se caracteriza pelo dualismo entre e o espírito e a matéria, o bem e o mal. “Os gnósticos distinguem, portanto, nitidamente, dois mundos: o mundo material, mau, e o mundo espiritual, o bom. Os homens possuem um elemento material, o corpo, a carne, e um elemento espiritual, a alma, que constitui o homem verdadeiro.”[1]

Portanto, do ponto de vista filosófico, o gnosticismo é marcado por um forte dualismo de matriz platônica. E a gnôsis, enquanto doutrina e revelação religiosa, se apresenta com uma preocupação prioritariamente soteriológica, conclamando a libertação da alma deste mundo material no qual ela se encontra aprisionada, para retornar ao mundo espiritual do qual ela saiu. Tal libertação só é possível, então, através de uma espécie de iluminação, “uma revelação (conhecimento) celeste acompanhada, frequentemente, por fórmulas e ritos mágicos. Nem todos podem participar da gnose. Ela é reservada só aos iniciados, e aí parecia residir sua fortíssima atração.”[2]

Existiram gnosticismos no período chamado apostólico da tradição cristã, alguns até mencionados no Novo Testamento. É o caso, por exemplo, da corrente simoniana, que via em Simão, aquele citado no livro canônico de Atos dos Apóstolos (At 8.9-11, 18), seu grande fundador, considerado por alguns o próprio poder da divindade, por outros, mais à frente, o grande deus supremo. Ao seu lado, os adeptos honravam outra divindade chamada Helena, que “seria a primeira emanação da mente de Simão, da qual foram gerados anjos e poderes.”[3]

Como se não bastasse essa tendência gnóstica no período apostólico, outra que fazia uma interpretação cristológica que entendia Cristo como um Homem Celeste e uma leitura dos textos do apóstolo Paulo que o relacionava às convicções dualistas, o tornava o apóstolo preferido de alguns gnósticos. Marcião teria sido um destes. Para Marcião, um filho de bispo nascido no início do século II nas regiões da atual Turquia, tudo o que simplesmente parecesse judaico deveria ser eliminado do cristianismo de seu tempo. Foi ele, por exemplo, quem teve a ideia de se elaborar um cânon cristão, ou seja, uma lista de livros sagrados que demonstrassem definitivamente que o cristianismo não era e não tinha nenhuma relação com o judaísmo. “Reduz ele o cânon ao Evangelho de Lucas e às Epístolas de Paulo.”[4]

Foi Paulo o apóstolo por excelência pelo simples fato de ter sido o único que realmente rompera com os judeus e fora pregar aos pagãos, segundo a interpretação feita por Marcião. Contra este, Eusébio faz algumas referências em passagens breves como nas seguintes: H.E. IV, 23.4 e em H.E. V, 13.1.

Uma vez que não temos os textos de Marcião, parte do essencial de seu pensamento religioso se resume como na seguinte exposição feita por Frangiotti:

O Demiurgo criou o mundo e o homem, sua própria imagem, de modo que imprimiu necessariamente, nesta obra da criação, o selo de seu poder restrito. Muito fraco para resistir ao elemento material de que seu corpo é formado, o homem cedeu às sugestões do maligno e se expôs à rigorosa justiça do Criador. Exceto um pequeno número de homens, todos os descendentes do primeiro homem se corromperam cada vez mais. O Demiurgo, irritado, os abandonou, pois, ao poder dos demônios, reservando para si os justos, para com eles formar um povo querido, o povo judeu, ao qual deu sua Lei, e ao qual socorria com todo o seu poder, mas sem sucesso, na luta contra o maligno. Contrariamente, pleno de amor para com a humanidade, o Deus bom quis pôr fim a esta luta trazendo a si os homens unicamente por amor. Enviou, então, sobre a terra, seu Cristo, com ordem de revelar a todos os homens, pagãos e judeus, sua essência até então oculta. [...] Revestido de uma aparência de corpo, lançou, a partir desse momento, o fundamento de um novo reino espiritual. Mas, por instigação dos judeus, foi condenado à morte. Sua paixão e sua morte, contudo, foram só aparentes, porque, para sofrer e morrer, era-lhe necessário um corpo real. Ora, ele não podia assumir um corpo material para não cair sob o poder do maligno, sem se submeter ao poder do Demiurgo. Vencido e cheio de cólera, o Deus do AT rasgou o véu do Templo e se submeteu ao Deus de Jesus.[5]

Para os seguidores de Marcião, os chamados marcionitas, Jesus Cristo personificava a revelação divina na qual eles acreditavam. A diferença entre os destinos daqueles que acreditaram no Demiurgo e aqueles que acreditaram na divindade de Jesus Cristo conforme criam os marcionitas, resumia-se na ideia de que estes viverão eterna e perfeitamente felizes em seu reino, enquanto aqueles, como os judeus, passando por um justo juízo, serão condenados ou, na melhor das hipóteses, poderão receber uma felicidade limitada conforme as suas boas obras[6].

Marcião não era um grande teólogo, mas um grande fundador e organizador de igreja. Seus seguidores eram impelidos a uma prática moral muito rigorosa, tendo, inclusive, de interditarem seus matrimônios e o consumo de vinho e de carnes. As igrejas marcionitas, que subsistiram por algum tempo, sobretudo, na Mesopotâmia, precederam outra tendência que surgiria na antiguidade chamada de Maniqueísmo[7].

Até a próxima parte!

Abraços,
Jefferson

NOTAS:

[1] FRANGIOTTI, Roque. História das Heresias... p. 34 e 35. Para o gnosticismo, somente o elemento espiritual do ser humano é capaz de receber e atender o apelo à salvação. Segundo Frangiotti “a redenção consiste em sair deste mundo material, mau, voltado à destruição, e voltar ao mundo espiritual do Pai. Portanto, a salvação está assegurada somente aos ‘espirituais’ gnósticos, àqueles que têm, em si mesmos, a centelha divina originária. Esta centelha é despertada por um processo de conhecimento através da revelação feita ao espírito, através do qual a alma do gnóstico toma consciência da sua verdadeira natureza: sufocada pela matéria, aspira libertar-se dos liames do corpo e do mundo material.”
[2] FRANGIOTTI, Roque. História das Heresias... p. 36.
[3] FRANGIOTTI, Roque. História das Heresias... p. 36.
[4] DANIÉLOU, Jean; Marrou, Henri-Irenée. Nova história da Igreja... p. 115. Marcião, em sua empreitada de elaborar um cânon cristão, além de rejeitar toda a Bíblia Hebraica, entendeu que os evangelhos de Mateus, Marcos e João não eram dignos de credibilidade no que se referia ao real significado da fé cristã, estando ainda muito presos às tradições judaicas. Fez uma seleção cuidadosa tanto dos textos atribuídos a Lucas, excluindo tudo o que pudesse aparentar uma tendência judaica, como dos textos atribuídos a Paulo, o qual, segundo Marcião, teria sido o único que realmente compreendeu Jesus.   
[5] FRANGIOTTI, Roque. História das Heresias... p. 42 e 43. Na mentalidade dos que eram contrários a união entre o gnosticismo e a religião dos cristãos, a figura de Marcião representava uma grande ameaça. Contudo, embora ele tenha sido muito influenciado pelas convicções gnósticas, também discordava de muitos pontos, acabando por organizar um movimento distinto, separado, que em alguns aspectos chegava a ser radicalmente contrário à cosmovisão gnóstica.
[6] “Quanto aos mortos antes da aparição de Cristo, criam que, tocado de compaixão para com eles, Cristo descera aos infernos para lhes oferecer sua salvação a todos, judeus e pagãos.” FRANGIOTTI, Roque. História das Heresias... p. 43.
[7] O Maniqueísmo foi uma corrente de pensamento religioso que seguia as mesmas perspectivas dualistas presentes no gnosticismo, especialmente, no marcionismo. Fundado por Mani, um profeta persa, o maniqueísmo data do século III, reunindo de modo sincrético elementos de diferentes tradições religiosas. É provável que por volta de 302, o imperador Diocleciano tenha promulgado um documento oficial através do qual procurava frear o avanço do maniqueísmo no Império Romano. Segundo Eusébio, em sua H.E. VII, 31.1: “Neste tempo, também aquele louco, epônimo da endemoninhada heresia, armava-se do extravio da razão; o demônio, sim, o próprio Satanás, adversário de Deus, empurrava aquele homem para ruína de muitos. Sendo como era bárbaro em sua vida, por sua própria fala e seus costumes, e demoníaco e demente por natureza, empreendia façanhas em consonância com isto e tentava fazer o papel de Cristo, ora proclamando-se a si mesmo Paráclito e Espírito Santo em pessoa , inflado por sua loucura, ora elegendo, como Cristo, doze discípulos co-partícipes de seu novo sistema. Em realidade, impingiu umas falsas e ímpias doutrinas a base de remendos recolhidos das inúmeras e ímpias heresias, já há muito extintas, e desde a Pérsia as foi transmitindo como veneno mortífero até nossa própria terra habitada, e desde então o ímpio nome dos maniqueus pulula até hoje entre muitos. Este foi, pois, o fundamento desta gnose de falso nome, que brotou nos tempos mencionados.”

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Parte 2 :: texto 1 :: A aristocracia espiritual gnóstica na perspectiva da Nova História - por Jefferson Ramalho

PARTE II - O Gnosticismo e suas origens

O processo de avanço, mas também de crises internas do cristianismo primitivo, mais corretamente chamado de judeu-cristianismo, se deu do ano 70 ao ano 140 de nossa Era. Foi neste contexto que o gnosticismo surgiu, tendo uma identidade já bastante diversificada. É necessário salientar que se trata de um movimento distinto das tendências apocalípticas, tanto as de matriz judeu-cristãs como as que eram puramente judias. O fato é que este gnosticismo do qual estamos falando trata-se daquele movimento que, ao lado de tantas outras correntes que surgiriam, sobretudo, a partir da segunda metade do século II, compuseram aquela gama de tendências cristãs que após pouquíssimo espaço de tempo foram consideradas as primeiras heresias da história da teologia. Vistas como tendências heterodoxas e controvertidas, elas obrigaram os primeiros intelectuais cristãos – os conhecidos Padres da Igreja – especialmente aqueles que abraçaram a causa apologética, a escreverem as primeiras obras e tratados de teologia que respondiam os seus equívocos doutrinários.

O gnosticismo, ao lado de tantas outras tendências tidas como heterodoxas, foi acusado, respondido, censurado e silenciado. Hoje, o que sabemos a seu respeito, graças a Eusébio e aos seus continuadores no trabalho historiográfico-apologético, são apenas aquelas informações que o condenam. A tendência gnóstica foi considerada a primeira e mais perigosa heresia surgida no seio da igreja primitiva. Não fossem os escritos encontrados em Nag Hammad ao final da década de 1940[1], pouco ou mesmo nada se saberia a respeito de suas ideias a não ser aquilo que foi escrito pelos seus adversários. Segundo nos informa Wiliston Walker, “é dessa descoberta que temos obras como O Evangelho da Verdade, O Evangelho de Tomé, o assim chamado Tratado Tripartido e o Tratado Sobre a Ressurreição, frequentemente referido como a Epístola a Regino.”[2] 

O gnosticismo foi muito amplo, diversificado, e teria surgido por volta dos anos 70 do primeiro século, após a queda de Jerusalém. Há quem relacione o Ebionismo[3] como sendo uma primeira face do gnosticismo cristão. Contudo, Daniélou afirma que esta corrente não faz “parte dos gnósticos no sentido próprio do termo.”[4] Em todo o caso, como o próprio Daniélou salienta, a corrente ebionita era composta por “cristãos de língua aramaica, muito afeiçoados às práticas judaicas, mas hostis ao Templo de Jerusalém e agarrados a doutrinas esotéricas, como a transmigração.”[5]

Um segundo grupo localizado frequentemente no contexto de origens do gnosticismo é o dos elquesaítas. O Elquesaísmo tinha esse nome por causa de seu fundador Elxai, o qual teria recebido uma revelação divina enquanto estava no país dos partas no ano 100, o terceiro ano do reinado de Trajano. Tal revelação, transcrita num livro que lhe fora entregue por um anjo, tratava do perdão pelos pecados praticados após o batismo. Depois desta experiência, a orientação de Elxai teria sido no sentido de que os fiéis deveriam orar voltados para Jerusalém, se circuncidar e viver conforme a Lei judaica. Eusébio assim se refere aos elquesaítas em sua História eclesiástica:

Também então deu início a uma nova perversão a heresia chamada dos helquesaítas, que se extinguiu logo depois de nascida. E mencionada por Orígenes em uma homilia sobre o salmo 82, que pronunciou em público, e diz assim: "Veio recentemente um que se gloria de poder ser embaixador de uma doutrina atéia e ímpia por demais, chamada dos helquesaítas, que se levantou recentemente contra as igrejas. Quais são as maldades que profere esta doutrina, vou expô-las, para que não vos capture. Rechaça algumas coisas de toda a Escritura; utiliza, no entanto, passagens tomadas de todo o Antigo Testamento e dos Evangelhos; rechaça por inteiro o Apóstolo. Diz que renegar a fé é coisa indiferente, e que o homem atento, em caso de necessidade, renegará com a boca, ainda que não com o coração. E possuem um livro do qual dizem que caiu do céu e que quem o ouça e tenha fé receberá perdão de seus pecados, um perdão diferente do que Cristo Jesus deu."[6]

Conforme bem observa Roque Frangiotti, o historiador Eusébio se equivocou ao situar o surgimento do Elquesaísmo entre 245 e 250. Antes, a documentação confiável a respeito dessa corrente deve-se a Hipólito, especificamente em sua obra Philosophoumena, a qual, inclusive, teria sido conhecida pelo próprio Orígenes. Diferentemente da exposição até bastante agressiva feita por Eusébio, Daniélou assim expõe as características do pensamento elquesaíta:

[...] seu cristianismo lembra em muitos traços o ebionismo. Cristo é apenas profeta. As Epístolas de São Paulo são rejeitadas. Os elcasaítas não passam, pois de judeu-cristãos heterodoxos.  Mas prendem-se também ao judaísmo heterodoxo. Rejeitam os sacrifícios. Retêm apenas certas partes do Antigo Testamento. Conhecem igualmente práticas batistas. [...] Anotemos afinal a semelhança com Hermas, que também recebe a revelação através de um livro, cujo conteúdo é a pregação de uma última remissão para os pecados cometidos após o batismo. Ora, Hermas é profeta judeu-cristão. Podemos, pois, concluir de tais dados que é o elcasaísmo um movimento judeu-cristão heterodoxo, vizinho do ebionismo, mas vinculado à Síria oriental.[7]

Posteriormente, podemos dar atenção a outro movimento pertencente ao contexto de origens do gnosticismo que é o dos nicolaítas. Há diferentes passagens em algumas das Epístolas canônicas do Novo Testamento como as que foram atribuídas a Judas e a Pedro fazendo referências a certo grupo que, ao que tudo indica, dizem respeito a essa corrente. O Apocalipse de João também parece estar pensando neles ao se referir a um movimento de semelhantes tendências nas regiões da Ásia Menor. Segundo Daniélou, “se reunirmos os traços que aparecem nestes textos, verificaremos em primeiro lugar a rejeição completa das observâncias noáquicas, fato que devia escandalizar os judeu-cristãos.”[8] O mais provável é que o nicolaísmo estivesse ligado à personagem bíblica chamada Balaão, pai do dualismo e ancestral dos magos na perspectiva judaica contemporânea. Aí identificamos elementos da rebelião gnóstica contra a divindade da Bíblia Hebraica, a qual teria sido responsável por iludir as expectativas apocalípticas do povo.

Além dessas referências aos nicolaítas contidas em textos canônicos da tradição judaico-cristã, podemos sugerir a consulta de menções feitas por Padres como Ireneu, além do próprio Eusébio. Este, sobre os nicolaítas, teria fornecido mais detalhes:

Nesta época surgiu também a heresia chamada dos nicolaítas, que durou pouquíssimo tempo e da qual também faz menção o Apocalipse de João. Estes se jactavam de que Nicolau era um dos diáconos companheiros de Estevão encarregados pelos apóstolos do serviço aos necessitados. Pelo menos Clemente de Alexandria, no livro III dos Stromateis, conta sobre ele, literalmente, o que segue: "Este, dizem, tinha uma mulher muito formosa. Depois da ascensão do Salvador, tendo os apóstolos reprovado seu ciúme, trouxe sua mulher a público e permitiu que se entregasse a quem quisesse, pois diz-se que esta prática está de acordo com o dito: 'Deve-se abusar da carne'.” E na verdade, por seguir o que foi feito e dito por simplicidade e impensadamente, os que compartilham sua heresia se prostituem sem a menor reserva. No entanto, eu sei que Nicolau não teve trato com nenhuma mulher que não aquela com quem estava casado, e que de seus filhos, as mulheres chegaram virgens à velhice e o rapaz permaneceu puro. Sendo isto assim, a exposição de sua mulher, da qual tinha ciúmes, no meio dos apóstolos, era um desprezo à paixão, e a abstenção dos prazeres que mais ansiosamente são procuradas ensinava a "abusar da carne", pois creio que, conforme o mandato do Salvador, ele não queria ser escravo de dois senhores, o prazer e o Senhor. Dizem igualmente que Matias ensinava isto mesmo: para a carne: combatê-la e abusar dela, sem consentir-lhe nada para o prazer; e para a alma, fazê-la crescer mediante a fé e o conhecimento. Isto, pois, seja o bastante sobre aqueles que, se na época mencionada empreenderam a tarefa de perverter a verdade, extinguiram-se, contudo, por completo em menos tempo do que leva para dizê-lo.[9]

Daniélou conclui que esta exposição de Eusébio possivelmente resulte daquela “anedota, contada por Clemente de Alexandria, segundo a qual este Nicolau teria oferecido sua mulher a outros. Nossas informações sobre os nicolaítas se reduzem assim a pouca coisa. Nicolau era o equivalente grego de Balaão.”[10]

Se os nicolaístas compunham um primeiro grupo de tendências gnósticas entre os cristãos, o segundo seria o de Cerinto, um judeu-cristão circuncidado, que guardava rigorosamente o sábado. Segundo Eusébio, Cerinto teria sido um autêntico heresiarca:

Sabemos que pelas datas mencionadas Cerinto fez-se cabeça de outra heresia. Caio, a quem já citamos antes, escreve sobre ele o que segue, na disputa que lhe é atribuída: "No entanto, também Cerinto, por meio de revelações que diz serem escritas por um grande apóstolo, apresenta milagres com a mentira de que lhe teriam sido mostradas por ministério dos anjos, e diz que depois da ressurreição o reino de Cristo será terrestre e que novamente a carne, que habitará em Jerusalém, será escrava de paixões e prazeres. Como inimigo das Escrituras de Deus e querendo fazer errar, diz que haverá um número de mil anos de festa nupcial." E também Dionísio, que em nosso tempo obteve o episcopado da igreja de Alexandria, ao dizer no livro II de suas Promessas algumas coisas sobre o Apocalipse de João como recebidas de uma antiga tradição, menciona o mesmo Cerinto com estas palavras: "E Cerinto, o mesmo que instituiu a heresia que toma seu nome, a cerintiana, que quis creditar sua própria invenção com um nome digno de fé. Este é efetivamente o tema da doutrina que ensina: que o reino de Cristo será terreno. E como ele era um amante de seu corpo e inteiramente carnal, sonhava que consistiria do mesmo que ele desejava: fartura do ventre e do que está abaixo do ventre, ou seja: de comidas, de bebidas, de uniões carnais e de tudo aquilo com que lhe parecia que se procurariam estas coisas de uma forma mais bem sonante: festas, sacrifícios e imolação de vítimas sagradas."[11]

Percebe-se o estilo inconfundível de Eusébio e as suas motivações explicitamente apologéticas não o escondem. Tudo depende do modo como a tendência é exposta. Daniélou, sem tais intentos por detrás de sua exposição, afirma que Cerinto ensinava “que o mundo não foi criado por Deus, mas por um poder muito distante e que ignora o Deus que paira por sobre tudo. Jesus nasceu de José e de Maria. Não passa de um homem eminente.”[12] E, mais uma vez, sem as mesmas pretensões apologéticas próprias da historiografia eusebiana, Daniélou apenas complementa que para Cerinto, Cristo desceu sobre Jesus “sob a forma de pomba, na hora do batismo. Anunciou o Pai desconhecido. Depois subiu para o Pai, antes da Paixão.”[13]

Analisando tais concepções, não fazendo, como Eusébio, juízos agressivos ou avaliações teológicas, podemos acompanhar Daniélou, o qual distingue dois dados essenciais nas convicções desta tendência:

Por um lado, Cerinto prolonga uma corrente judeu-cristã heterodoxa. Prende-se a um messianismo de caráter muito materialista. Esse milenarismo lhe era comum com muitos cristãos da Ásia. Mas nega o nascimento virginal de Jesus e sua natureza divina. É um grande profeta sobre o qual desceu o poder divino. Estamos aqui diante de um judeu-cristianismo heterodoxo, como o encontramos no ebionismo.[14]

Há, pelo menos, mais sete grupos associados às origens do gnosticismo, que segundo Daniélou merecem atenção[15]. Nós, porém, optamos por daqui pra frente nos dedicarmos apenas a mais duas questões que geralmente estão relacionadas aos gnósticos. A primeira tem a ver com o gnosticismo de Marcião, o que não parece ser unanimidade entre historiadores e teólogos. Enquanto alguns relacionam Marcião de forma direta ao gnosticismo, outros preferem afirmar que ele apenas assumira alguns de seus elementos, sendo, porém, protagonista de uma tendência própria, separada do gnosticismo. Nossa segunda preocupação, a qual, inclusive, dará desfecho ao presente artigo tem a ver diretamente com a temática da aristocracia espiritual gnóstica. Será nesta última releitura que pensaremos sobre como o gnosticismo se caracterizava e se considerava diante de outras perspectivas, além de observarmos quais eram as suas principais influências filosóficas e as suas mais importantes concepções teológicas.

Até a próxima parte! Pretendo postá-la até terça-feira, ok!

Abraços,
Jefferson


NOTAS:

[1] “As primeiras informações oficiais sobre o achado de um lote de papiros reunidos em uma encadernação, um códice, remontam ao começo do mês de outubro de 1946. Vieram através do diretor do Museu Copta do Cairo, Togo Mina, que acabara de comprar um dos doze códices que hoje compõem a coleção. Mas a descoberta propriamente dita remonta sem dúvida ao fim do ano de 1945, na região circunvizinha da cidade de Nag Hammadi (daí o nome atual da coleção), perto do sítio arqueológico de Chenoboskion (daí aparecer esse nome nos primeiros trabalhos sobre os textos de Nag Hammadi), ao pé da falésia de Djebel-et-Târif, cerca de uma centena de quilômetros do sítio arqueológico de Luxor. Depois de inúmeras trocas de opiniões entre diversos egiptólogos, o anúncio oficial da descoberta foi feito em janeiro de 1948, na imprensa egípcia, e em 8 de fevereiro de 1948 na Academia de Inscrições e Belas-Letras, através de uma comunicação de H.-C. Puech e J. Doresse, em Paris.” KUNTZMANN, R., DUBOIS, D. Nag Hammadi – O Evangelho de Tomé: textos gnósticos das origens do cristianismo. São Paulo: Paulus, 1990, p. 11 e 12. (Documentos do mundo da Bíblia; 6). cf. VIELHAUER, P. História da Literatura Cristã Primitiva. São Paulo: Academia Cristã, 2005, p. 646 a 662.   
[2] WALKER, Wiliston. História da Igreja Cristã. 3. ed. São Paulo: ASTE, 2006, p. 77. “Todas estas obras iluminam o caráter de um gnosticismo cristão. A biblioteca também possui, todavia, obras de proveniência gnóstica que mostram pouco ou nenhum interesse no cristianismo ou familiaridade com ele. De qualquer forma, duas coisas têm ficado claras a partir de um estudo dos materiais gnósticos. A primeira é que o gnosticismo não foi de forma alguma um fenômeno uniforme. Tanto os relatos dos primeiros críticos cristãos como os materiais da própria coleção de Nag Hammadi, indicam que não havia um único corpo de ensinamentos comum a todos os escritos pertencentes a essa corrente na religião antiga. Além disso, contudo, e igualmente importante para uma compreensão do cristianismo do segundo século, agora está claro que nem todo gnosticismo era cristão e que o movimento ou tendência religiosa que ele representa, existiu independentemente da igreja, ainda que ele não preceda em muito o cristianismo.”
[3] “Os ebionitas viviam segundo a Lei judaica e rejeitavam radicalmente a pregação paulina. Negavam a divindade de Jesus, reconhecendo-o, porém, como Messias anunciado pela Lei e pelos profetas. Jesus teria nascido normalmente de José e Maria e fora ungido por Deus, com o Espírito Santo, no Jordão, quando de seu batismo, recebendo a filiação divina.” FRANGIOTTI, Roque. História das Heresias (Séculos I-VII) – Conflitos Ideológicos dentro do Cristianismo. São Paulo: Paulus, 1995, p. 19.
[4] DANIÉLOU, Jean; Marrou, Henri-Irenée. Nova história da Igreja – dos primórdios a São Gregório Magno. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1984, p. 80. (Coleção Nova História da Igreja, vol. 1).
[5] DANIÉLOU, Jean; Marrou, Henri-Irenée. Nova história da Igreja... p. 80.
[6] H.E. VI, 38 – adotaremos este formato, a partir de agora, sempre que fizermos citações diretas da História eclesiástica, de Eusébio de Cesaréia. Também optamos pela tradução da versão bilíngüe (espanhol-grego) organizada por Argimiro Velasco-Delgado, entendendo que esta é a que melhor se aproxima da versão original da obra, de todas as traduções existentes em língua portuguesa, já publicadas no Brasil. cf. EUSÉBIO DE CESARÉIA. História eclesiástica; [tradução Wolfgang Fischer]. – São Paulo: Fonte Editorial, 2002, p. 141 e 142. A versão organizada por Velasco-Delgado é: EUSÉBIO DE CESARÉIA. Historia eclesiástica; [tradução Argimiro Velasco-Delgado, O.P.]. – Madrid: Biblioteca de autores cristianos, 2001.
[7] DANIÉLOU, Jean; Marrou, Henri-Irenée. Nova história da Igreja... p. 80. Tanto elcasaísmo como elquesaísmo estão corretos. Trata-se, apenas, de uma diferença de tradução.
[8] DANIÉLOU, Jean; Marrou, Henri-Irenée. Nova história da Igreja... p. 81.
[9] H.E. III, 29.1-4.
[10] DANIÉLOU, Jean; Marrou, Henri-Irenée. Nova história da Igreja... p. 81.
[11] H.E. III, 28.1-5.
[12] DANIÉLOU, Jean; Marrou, Henri-Irenée. Nova história da Igreja... p. 82.
[13] DANIÉLOU, Jean; Marrou, Henri-Irenée. Nova história da Igreja... p. 82.
[14] DANIÉLOU, Jean; Marrou, Henri-Irenée. Nova história da Igreja... p. 82. Nesta aproximação de Cerinto ao ebionismo que, segundo Daniélou, já teria sido feita por Epifânio, é possível entender porque “Cerinto considera que o mundo não foi criado por Deus, mas por um demiurgo que ignora o verdadeiro Deus. É o gnosticismo propriamente dito, que aparece pela vez primeira em sua formulação precisa. Por este traço, característico da era de Trajano, Cerinto modifica uma corrente judeu-cristã anterior. Encontra-se tanto na heterodoxia judaica quanto no cristianismo.”
[15] Os sete grupos são chamados distintamente de: Simonianos, Menandrianistas, Satornilanistas, Barbelognósticos, Setenses, seguidores de Carpócrates e seguidores de Basílides. Para uma leitura breve sobre cada corrente cf: DANIÉLOU, Jean; Marrou, Henri-Irenée. Nova história da Igreja... p. 82 a 88.